“3° Simpósio Internacional de Literatura e Crítica Literária: Poesia Contemporânea - Travessias Poéticas Brasil & Portugal (PUC-SP /UAL)
Artigo selecionado entre 200 e tantos outros para número especial da Revista Fronteiraz - PUC - SP.
Guardando rebanhos e águas: a subjetividade ecocrítica na poesia de Fernando Pessoa e Manoel de Barros
Prof. Dr. Jorge Alves Santana - Letras/UFG
RESUMO:
Conceitos da Ecocrítica são usados aqui em sua relação com o pensamento ecológico e a estética lírica para analisar os livros O guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro e O Guardador de águas, de Manoel de Barros.
Palavras-Chave: Fernando Pessoa – Manoel de Barros – Ecocrítica - subjetividade
ABSTRACT:
The Ecocriticism concepts are used here, in relation to the connections between ecological thought and the lyrical aesthetics, to analyze the works The Keeper of Sheep, by Fernando Pessoa / Alberto Caeiro and The Water Keeper, by, Manoel de Barros.
Key Words: Fernando Pessoa – Manoel de Barros – Ecocriticism - subjectivity
A poesia de O Guardador de rebanhos, do heterônimo pessoano Alberto Caeiro, representa um universo campesino/pastoral no qual a subjetividade lírica desdobra-se em movimentos de abstrações estéticas e filosóficas no meio da representação/constituição das coisas. Tanto subjetividade quanto natureza são cartografadas por anteparos culturais que minimizam as semelhanças e os vínculos espontâneos e estruturais entre o ser humano e a realidade ecológica na qual ele está inserido.
Já a poesia de O guardador de águas, do poeta brasileiro Manoel de Barros, representa subjetividades e natureza em uma disposição de devir coisal constante (Deleuze; Guattari: 1996) . O homem e a natureza são colocados em dinâmica animista, cuja hierarquia entre os seres é minimizada, ou ressignificada, o que possibilita a criação de um corpo sem órgãos inventivo e instigante no quesito de constituição e funcionalidade da representação do ser humano, da flora, da fauna e de elementos inorgânicos.
O nivelamento de importância coisal entre os seres, constante no poeta brasileiro, aponta para uma modalidade representacional que desterritorializa a importância fundante dos valores exclusivamente antropocêntricos e, consequentemente, aponta para uma movimentação político/cultural que reflete sobre o respeito e a dependência existencial entre os seres que formam a rede da natureza.
Essa ótica vai ao encontro de estudos contemporâneos da Ecocrítica, tanto na sua perspectiva de cultura inglesa, no caso de Cherryl Glotfelty (1996), Harold Fromm (1996) e Greg Garrard (2006), quanto na francesa, presente nos escritos de Félix Guattari (1989;1996). Essa disciplina reflete sobre as relações do pensamento ecológico com a produção artística, que, no caso de nossas reflexões, debruça-se sobre as duas construções em foco: O guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro e O guardador de águas, de Manoel de Barros.
A Ecocrítica potencializa seus esforços e cria um arcabouço teórico-analítico quando, à maneira de Glotfgelty e Fromm (1989), elabora questões, das quais escolhemos as seguintes para guiar nosso trabalho: Que modalidades representacionais da natureza estão presentes na obra? Que funcionalidade a natureza exerce no texto? Soma-se a essas duas, uma outra que considero importante para minha pesquisa no campo dos estudos literários, aquela que trata das formações da subjetividade. A questão seria: Como a Ecocrítica redimensiona as concepções de sujeito?
Dissemos que Pessoa/Caeiro intenta mergulhar na natureza em que se insere. A ação do mergulho supõe minimamente um corpo que está fora de um ambiente, aquático ou figurado, e passará a fazer parte do ambiente/alvo do mergulho. Água ou natureza forma um ambiente que não faria parte da constituição essencial do sujeito do mergulho, pois ele habita um lugar fora do lugar de mergulho. Assim, podemos perceber que o eu poemático coloca-se como um elemento estranho à dimensão que, por natureza, é seu lugar de origem e de constituição presente.
Lembremo-nos de um dos poemas que representam o leitmotiv desse livro:
I - Eu Nunca Guardei Rebanhos
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
[...] Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho. [...] Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado. (Pessoa: 1995, p. 203-204)
O poema imediatamente inquieta o interator (leitor ativo) quando se denega a condição funcional do sujeito. Em desacordo com o título do livro, vemos a funcionalidade subjetiva abandonar o que seria o reles animal doméstico/fonte de alimento (a ovelha) para aferrar-se a idéia de que tal rebanho é feito por seus pensamentos. Sua alma seria o pastor de tais pensamentos que estariam imbricados por sensações e sentimentos. Mais pensamentos do que sensações e sentimentos, pois o poema, em franco processo alegórico, procura explicar a metodologia de composição e de postura da vida sensacionalista que o autor tenta concretizar nessa e em outras obras.
Vários elementos empíricos da natureza são aí elencados e convencionalmente pertencem ao repertório de temas oficiais da natureza presentes na poesia pastoral européia, tais quais: o rebanho, o vento, o sol, as estações, a planície, a noite entrada, a borboleta, as flores, o ruído de chocalho, a curva na estrada, o andar à chuva, o cordeirinho, a erva, a nuvem que passa, o cajado nas mãos, o cimo de um outeiro, o pôr do sol, a árvore antiga. Um conjunto de seres que representam o reino animal, vegetal e mineral e potencialmente possuem uma riqueza existencial poderosa para reterritorializar a subjetividade que muito provavelmente anda à procura de suas raízes e da paz que o estrato urbano não lhe proporciona.
Caeiro, no entanto, não parece estar a nivelar sua existência com a dos demais seres de sua rede ecológica. Tais seres não existem pelo seu valor intrínseco (o que vale por/em si mesmo) ou relacional (o que vale para/em si mesmo e para os outros), já que a tônica representacional encaminha-se para um exercício intelectual de comprovação de uma tese. A tese em questão é a de que a subjetividade faz-se, e é percebida, de modo fenomenológico. O sujeito é aquilo que sua imanência é: um conjunto de sensações/percepções que culmina, paradoxalmente, em uma reflexão racionalista que é expressa nos versos: “Pensar incomoda como andar à chuva /Quando o vento cresce e parece que chove mais.” De fato, a subjetividade do eu poemático enriquece-se no seu campo existencial e accional quando ele se abre para o locus ecológico que se lhe descortina, como acompanhamos no último poema desse livro:
XLIX - Meto-me para Dentro
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme. (Pessoa: 2005, p. 227-228)
Depois da constatação dos ganhos obtidos pela imersão na natureza, o sujeito entra para sua casa, recolhe-se ao seu quarto e agradece ao dia cheio de sol, ou suave de chuva. Olha agradecido e fraternal para o sossego das árvores. Em seguida, recolhe-se ao seu próprio íntimo; uma intimidade que ainda funciona sob a dinâmica da interioridade e da exterioridade, ou seja, de um pensamento que é dominado pela ótica da exclusão das substâncias e das formas na formação de suas singularidades.
O sujeito do poema sente a vida correr por si, como um rio por seu leito; porém, existe um “lá fora” de si mesmo que é “um grande silêncio como um deus que dorme”. Assim, não houve união ou hibridização entre essa subjetividade com o deus (grafado com letra minúscula) que representa a natureza em repouso. Parece que o contexto trata mais de uma aprendizagem dos sentidos e de uma razão mais maleável com o cotidiano do que de um processo de identificação inclusiva entre as partes. Cada um, poeta e natureza, repousa em sua dimensão própria, continuam a ser o que eram antes, mesmo que o humano tenha aprendido grandes lições de vida com os elementos do reino animal, vegetal e mineral: a natureza continua inclusiva (valendo por si mesma) com seus mistérios que não são mistérios, já que ela é apenas foco de sensações, e o poeta (recolhido em seu quarto civilizado e não em uma cama de relva debaixo de alguma árvore antiga) em sua egóica calma apreendida, mas não integrada, à natureza.
O guardador de rebanhos europeu receberá outras lições, que não apenas aquelas da natureza, para sua finalidade de exposição filosófica, de seu locus ribatejano no desdobramento da recepção de sua obra. Nessa seara de recepções e atualizações, merece destaque a hipotextualidade (Genette: 1982) criada por Manoel de Barros em seu O Guardador de águas, de 1989, sintomaticamente escrito após o livro de poemas Livro de Pré-coisas, de 1985. Digo sintomaticamente, pois no livro de poemas de 1985, já tínhamos uma explosão de representação ecológica, sob um intenso exercício literário como não tínhamos visto desde as paragens veredeiras de Guimarães Rosa.
Acompanhamos em O guardador de águas uma junção de ecologia profunda (Naess: 1994) com experimentalismos lingüístico/poético de cunho onírico, fantasístico e delirante em que a subjetividade territorializa-se/desterritorializa-se/reterritorializa-se em um locus de natureza ainda civilizada, mas já eivada de elementos alógicos e prelógicos que constituem dimensão complexa e heterogênea de possibilidades existenciais.
Mais do que um quadro de elementos regionais, o exótico ou oficiais (na versão governamental), o Pantanal de Manoel de Barros é representado em uma espécie de suboficialidade. O humano é redimensionado em uma proporção semelhante a seres que normalmente nossos olhos pragmáticos não enxergam. Os reinos animal, vegetal e mineral são mostrados em suas espécies pequenas, tanto em forma quanto em valor cultural. Riachos, árvores, brisa, latas, pardais, conchas, novilúdios, urubus, limo, caranguejos, formigas, passarinhos, mosquitos, cardos, pedra de arroio, seixal, jias, brejos, o rio, escaravelhos, lagartas, camaleões, aranha, jaburu, escorpiões, besouros, entre outros, formam um quadro em que o homem apequena-se, nivelando-se a seres menores que possuem uma vida repleta de portentosos fluxos accionais. Vejamos alguns fragmentos do poema que dá título ao livro:
O Guardador de Águas
I
O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase
coberto de limos -
Entram coaxos por ele dentro.
Crescem jacintos sobre palavras.
(O rio funciona atrás de um jacinto.)
Correm águas agradecidas
sobre latas...
O som do novilúnio sobre as latas será plano.
E o cheiro azul do escaravelho, tátil.
De pulo em pulo um ente abeira as pedras.
Tem um cago de ave no chapéu.
Seria um idiota de estrada?
Urubus se ajoelham pra
ele.
Luar tem gula de seus trapos.
II
Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rás o
exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto - e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada 2 pernas de ocaso
para dentro de um oco... E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde -
Como a foz de um rio - Bernardo se inventa...
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem.
V
Eles enverdam jia nas auroras.
São viventes de ermo. Sujeitos
Que magnificam moscas - e que oram
Devante uma procissão de formigas...
São vezeiros de brenhas e gravanhas.
São donos de nadifúndios.
(Nadifúndio é lugar em que nadas
Lugar em que osso de ovo
E em que latas com vermes emprenhados na boca.
Porém.
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor
de ninguém.
Nem ao Néant de Sartre.
E nem mesmo ao que dizem os dicionários:
coisa que não existe.
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com
letra
minúscula.)
Se trata de um trastal.
Aqui pardais descascam larvas.
Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.
E uma concha com olho de osso que chora.
Aqui, o luar desova...
Insetos umedecem couros
E sapos batem palmas compridas...
Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.
XX
[...]
De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem
o rumo das grotas.
Todas estas informações têm uma soberba desimportância
científica - como andar de costas.
(Barros: 1989)
Uma vasta e rica exposição de seres pequenos, do ponto de vista sócio-político-cultural, é colocada no palco em que se apresenta um projeto de subjetividade que é o de Bernardo da Mata, personagem também presente em o Livro de pré-coisas e em outros poemas do autor. Bernardo não é o protagonista à moda clássica desse poema-narrativa-esboço de vida, pois sua cartografia não se singulariza sob móveis antropocêntricos excludentes. Como um outsider, não se curva completamente aos agenciamentos institucionais de nossa civilização. Anda pelos ecossistemas do bioma pantaneiro como um ser igual aos demais. Sua relação com essa realidade radicaliza-se quando percebemos sua constituição egóica amalgamar-se com cada espécie que corporifica o poema.
O texto é aberto com a inusitada e bela imagem da aparelhagem de ser: “O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase coberto de limos.” E fecha-se com a profissão de fé que aponta a inutilidade/utilidade de exercitar-se a vida em facetas não produtivas do ponto de vista econômico predominante: “Todas estas informações têm uma soberba desimportância científica - como andar de costas.”
No poema, quando usamos as reflexões da ecologia profunda, proposta por Arne Naess (1989), os seres não-humanos são percebidos em suas singularidades. Não vivem para servir à humanidade, como prenuncia a mitologia do Gênesis e de várias outras religiões. São, pois, coisas improdutivas sob a perspectiva da cultura de produção e consumo de bens que só são positivados quando entram no circuito de produção de trabalho/lucros alienados e alienantes para o organismo social.
O universo poético/pragmático proposto pelo poema parece nos indicar que existem outras possibilidades accionais para o sujeito. Bernardo não é o rei dos animais, como nossa cultural judaico-cristã poderia lhe cobrar. Bernardo sequer é o administrador da natureza, como algumas linhas do pensamento ecológico postulam. Bernardo não é o funcionário do governo que obrigatoriamente monta uma aparelhagem de conhecimento, preservação e vigilância de ecossistemas em via de extinção. Bernardo não é o santo convencional da cultura ocidental, aquele sujeito que abandona a cidade e vai para o campo, ou afim, para encontrar-se com sua divindade e fortalecer-se para retornar à cidade e reeducar os corações endurecidos de seus conterrâneos. A cartografia de Bernardo da Mata vai além dos estratos cotidianos e amplamente manipulados pelos agenciamentos de poder hegemônico. Bernardo parece que se transmuta nos seres com os quais se relaciona. Sua constituição hibridiza-se e zoomorfiza-o na relação com os seres do pantanal/mundo.
Mais do que contexto de zoomorfização, porém, percebemos que o processo que conforma Bernardo aumenta sua ação quando a subjetividade deste ser coisifica-se. O processo de coisificação é mais radical que o processo de assemelhar-se aos animais. Esse processo implica a similaridade com seres vegetais e animais que, via de regra, encontrar-se-iam em nível de importância bem abaixo daquele valor que o humano julga possuir. Sobre o ser coisal, vale observemos o fragmento VI do poema Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada, deste mesmo livro:
VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
(Barros: 1989)
A personagem poética, criada por Manoel de Barros, é um ser-coisa, de abrangência compósita tão ampla que chega a abarcar variados ecossistemas pantaneiros e além. Sua existência é transfigurada pelas subexistências que lhe acoram as possibilidades quase infinitas. E nessa linha de produtividade subjetiva constante, já que o ser só o é de modo provisório, pois se encontra em constante devir (Deleuze; Guattari: 1996), é que também encontramos Bernardo, um ser-coisa inserido naquela preocupação fenomenológica, diferentemente da postura de Pessoa/Caeiro, ao vivenciar o seu Hicet Nunc
O valor da vida presente, no entanto, não é representada por uma liguagem racionalizante/racionalizada. A “agramacticalidade quase insana” instala-se como para lembrar o humano sobre suas antigas origens e que o vínculo com a natureza é essencial para o homem compreender-se a si mesmo, aos outros e o universo no qual é colocado. O dizer, para o eu poemático, é cheio de vareios/variabilidade e, sendo assim, a linguagem precisa ser deflorada, inaugurada e empoemada.
Temos aqui dois projetos estéticos que usam, diretamente ou indiretamente, temas do pensamento ecológico que se delineou e consolidou-se no decorrer do Século XX. O tratamento europeu diferencia-se do tratamento brasileiro, sem contudo estarem em uma dinâmica de exclusão. Ambos aproximam-se do tema e enriquecem-no ao seu modo. Se no primeiro, a região pastoral ribatejana serve de motivo para uma potente discussão artístico-filosófica, no segundo vemos uma lição de existencialidade rizomática radical, na qual possíveis cartografias humanas são dimensionadas na riqueza e heterogeneidade dos corpos sem órgãos.
A Ecocrítica pode então funcionar como repertório reflexivo/conceitual com o qual acompanhamos a produção artística aproximar-se de questões densas e importantes para nossa contemporaneidade. Dentre textos ficcionais e não-ficcionais tratados pela ótica ecocrítica, colocamos em relevo aqui o texto poético com seu enorme potencial de representar novos horizontes existenciais tanto no âmbito dos procedimentos lingüísticos que oxigena a língua quanto no âmbito na possibilidade de deslocamento de cartografias subjetivas conservadoras para cartografias subjetivas proteiformes, móveis e heterogêneas. Ou seja, trabalhamos com um salutar enfoque analítico-teórico que serve de móvel tanto para a evolução e consolidação do artístico quanto para recolocações de procedimentos básicos para o convívio humano/animal/vegetal/mineral/coisal pragmático.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Manoel de. O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 2001. Traduzido para o português pela Ed. 34, em 1996. Vols 1 e 3.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: literature au second degré. Paris: Seuil, 1982.
GARRARD, Greg. Ecocrítica. Trad. de Vera Ribeiro. Brasília: UNB, 2006.
GLOTFELTY, Cheryll & FROMM, Harold; (eds.). The ecocristicism reader: landmarks in literary ecology. Athens / London. The Univ. of Georgia Press, 1996.
GUATTARI, Félix. Les trois écologies. Paris, Galilée, 1989.
NAESS, Arne. Ecosofia. Trad.de Elena Recchia. Como: RED, 1994.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995.
Renato Mezan, em seu livro Freud, o pensador da cultura (1986), lapida o sentido do museu em nossa sociedade, quando explica o contexto sócio-político-cultural da Viena à época de Sigmund Freud e da sua invenção da Psicanálise. Acreditando que a época funciona como motor cartográfico inerente à formação do homem e de seu pensamento, Mezan explica como Viena transformara-se em um museu a céu aberto (sociedade refinada mas de grande superficialidade nos comportamentos humanos e arredia em relação às inovações científicas, tecnológicas e artísticas); situação contraditória, pois toda o restante da Europa sacudia-se aos sabores das tempestades inovadoras do final do séc. XIX e começo do Séc. XX.
Quando falo da situação de museificação, estou falando do museu-sarcófago, mumificador de qualquer objeto/instação/manifestação artísticos. Daquele museu que juntou centenas, milhares de obras de todo tipo e estilo artísticos e que os governos tratam, apesar do descaso econômico, como a jóia da coroa da memória da nação.
O paradoxo é que um arquivo que registra o processo evolutivo da vida de um povo esquece/interrompe o fluxo dessa vida arquivada que reflete e deveria ser a extensão direta da vida fora de suas paredes. Os dado/objeto/contexto museificados são retirado da circulação da usinagem semântica que brota das relações entre os homens ainda vivos e aqueles que ainda virão.
Grades, correntes, cordões de isolamente, ausência de janelas, luz artificial, guardas e guardas, sensores, modernos sistemas de seguranças formam a maquinária para isolar completamente o arquivo do museu das pessoas que estão constantemente criando realidades.
Esse sentimento de museificação, em ótica filosófica, relaciona-se com as condições do mesmo e do diferente: ou seja, o mesmo é o fenômeno aceito pelas regras de bom tom/utilidade/beleza de uma sociedade, enquanto o diferente é o fenômeno que não foi aceito por esse ideário ou então ainda não é compreendido o suficiente para fazer parte do rol de obras/instalações que já foram escrutinadas e aceitas como exemplares de valores oficiais da normalidade da cultura específica. Nesse sentido, a museificação clássica corta o fluxo do desejo; ou melhor, enquadra esse fluxo em caminhos rigorosamente cartografos em que a usinagem de sentidos é controlada e minimizada em sua capacidade produtiva.
Mezan discute o conceito para explicar a cidade de Viena, na época que antecede o nascimento, a conseqüente educação de Sigmund Freud, bem como a “invenção” da Psicanálise.
O fragmento de seu texto é saboroso:
“O museu, com sua disposição tranqüilizante, em que as obras coexistem umas ao lado das outras, protegidas do público pelas molduras e cordões de isolamento, pode ser igualmente visto como o lugar em que a arte é neutralizada, exatamente por meio da sua glorificação. A função do cordão de segurança pode ser interpretada como a de proteger, não a obra do vandalismo do espectador, mas este do poder de sedução e de inquietação contido na obra. Ao arrancá-la do contexto em que deveria produzir seu efeito inovador ao apresentá-la como exemplo de um etilo ou de um autor, o museu elimina este efeito e faz surgirem as obras como que flutuando no vazio, desprovidas mesmo da finalidade decorativa à qual se destinavam originalmente. Nesta perspectiva, é sugestivo lembrar que a visita aos museus de arte se faz geralmente acompanhada de um comentário, seja falado por um guia, seja escrito num texto; não é apenas a falta de familiaridade com o que está exposto naquelas salas que explica a necessidade do comentário, posto que esta própria falta de familiaridade precisa de explicada. Que se tenha tornado necessário ensinar a ver o que mostra um quadro ou uma estátua diz muito sobre esta função de neutralização da arte, já que a melhor forma de se escudar do sentido de uma produção humana é ignorar a forma pela qual ele se materializa, num estilo determinado e num código expressivo particular. Aqui como em tantas outras ocasiões, a ignorância serve propósitos mais sutis e obedece a razões emanadas da resistência” (p. 28)
Pensei nesse contexto de museificação quando Margareth, Alexandre, Francisco e eu (professores universitários e tals!) montamos nossa exposição de fotografias, “Fragmentos”, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Fotogramos cidades, monumentos, pessoas de quatro núcleos temáticos: Paris, EUA, Itália e Brasil e desejávamos mostrar aos nossos alunos como eles podem criar objetos artísticos quando fogem dos roteiros de turismo convencionais que o contexto midiático nos impõe.
No meio da montagem (trabalho braçal ao lado da curadoria artística!), começamos a discutir sobre exposições (museus!) e a sua relação com o público. Comentei sobre a necessidade da interação com o público que é o único responsável pela vida ativa da obra de arte. Sugeri que o contato entre expertador e fotos fosse dinâmico, com alguma espécie de contato, de vínculo, de interação maior entre as fotos expostas e o observador/fruidor.
Um de meus colegas disse, no entanto, que a obra de arte deve ser protegida de interações desse tipo que acabam por criar condições para ataques e ações afins, e que o valor intríseco da obra de arte (ou similar) deve ser resguardado de qualquer forma.
Minha resposta ao assunto apontou para uma tendência que, aos poucos, vem se consolidando no mundo inteiro quanto aos museus e congêneres: A inevitável interação entre obra/instalação e expectador/fruidor. Inevitável porque é a única forma de trazer pessoas vivas para o museu, dinamizando-o, pois. Pessoas vivas que em minutos, horas, dias, semanas ou por toda as suas vidas entrarão e dinamizarão as cartografias museificadas, mesmo que isso possa causar danos às obras que, mais do que viver em si mesmas e para si mesmas, vivem para os vivos.
O museu fica vivo quando pessoas vivas agem, de alguma forma, sobre as obras/instalações. Essa ação pode ser de vários tipos, como o fatídico “tocar” as obras, fotografar, arrepiar-se diante delas, comprar uma cópia da obra no bazar do museu, mudá-la de posição (coisa quase impossível! rs), vandalizar a obra de arte (nada recomendável, mas muito interativo do ponto de vista narcísico), sentar ao lado, em baixo, em cima da obra/instalação, filmar, fazer um sarau ao lado de, fazer um piquinique ao lado de, deitar e dormir ao lado de, fazer aniversário, casamento, batizado ao lado de (imagem um casamento na frente da Mona Lisa?!).
No Brasil, museus como o da Língua Portuguesa, em Sumpaulo, estão dinamizando essa relação interativa. Usam mídia imagética em movimento constante, interfaces computatoriais, móbiles, corredores vivos, enfim, um contexto no qual o expetador/fruidor ativa também sua potência criativa e têm condições para insuflar vida no objeto/instação artístico que fora ali museificado. Tal cartografia rizomática (porque suas raízes não são definidas em um apriori , mas sim se dinamizam em várias direções e extratos socias, culturais, políticos e subjetivos difentes) atrai públicos de variadas ordens: crianças, adolescentes, adultos, velhos, negros, brancos, pretos, brancos, (índios parece que ainda não vão lá!), homens, mulheres, gays e afins. A heterogeneidade social ativa prestigia e aprova com muita ênfase essa modalidade de museificação. Museifica-se, mas há sangue correndo nas veias do reduto que objetiva controlar a polivalência semântica da obra.
Em contrapartida, um museu como o MASP (e semelhantes como o Louvre, a Tate Galery, o Moma e tantos outros), classudo e sério, esvazia o poder interativo e criativo do visitante. Concreto frio. Sistema de segurança arrogante (porque altamente visível), Guardas burocráticos e deselegantes, linha de segurança (para não se aproximar da obra) muito definida, luz muito artificial que nos tira a idéia do tempo da vida real do lado de fora.
Assim, existem pessoas (como eu, que mesmo rodando no interior da caixa de concreto sem vida por horas e horas!) que preferem sair do prédio para ficar no vão do MASP... o grande vão do MASP! palco de tanta vida, de tantas tribos, de tantos interesses, de tanta energia que deseja ardentemente invadir o museu-sepulcro.
Fico no vão do MASP, também por horas e horas... e sei que de vez em quando um menina de um quadro de Renoir desce de sua prisão na exposição permanente e vem flanar comigo pelas subjetividades das pessoas que também frequentam o vão do MASP e a Av. Paulista.
Bom seria aquele museu que tivesse um corredor ligando-o as nossas casas, as nossas escolas, aos nossos shoppings, as nossas igrejas, enfim, as nossas subjetividades em constante formação e fluxo.
Circuitos comunicacionais (JAKOBSON:1971) estabelecem condições de comunicação e expressão de referenciais do universo ego-sócio-cultural por subjetividades emissoras/receptoras. Se a formalização rigorosa de esquemas comunicacionais normalmente não atentam para a subjetividade personalizadasdos usuários inseridos no processo, o pesquisador deve fazer o resgate do elemento humano que ainda é a razão de ser da existência desses sistemas. Nesse quadro, acompanharemos alguns aspectos da estruturalidade e da funcionalidade de um desses dispositivos comunicacionais, de esfera cibernética, que é a rede social do orkut.
Tal rede de comunicação social pode consolidar cartografias subjetivas em franco processo de homogeneização e alienação, quando oferece roteiros rígidos de ação do usuário. No entanto, dinâmicas de flexibilização e de deslocamentos processuais e existenciais criam estratégias que asseguram a produção e a manutenção de cartografias subjetivas criativas, produtivas e conhecedoras do espaço gerador dessas representações.
O DISPOSITIVO DA REDE SOCIAL
Charles Baudelaire encanta-nos, entre tantos sentidos e nuances de sua obra poética, quando nos apresenta sua peculiar estratégia de olhar a realidade a sua volta sob a dinâmica da flânerie. Seu olhar flanapela Paris já industrializada do século dezenove. Sob cheiros e fumaças das chaminés; ao largo das ruas tomadas por comércios e consumidores sedentos das últimas novidades fabris e tecnológicas; imerso na massa anônima de trabalhadores; sob os resquícios da aristocracia européia; e influenciado por segmentos vigorosos de burgueses endinheirados e sedentos de consumir bens materiais e imateriais, Baudelaire fala-nos sobre o exercício existencial de olhar o mundo a sua volta em regime de desligamento lúdico, em um primeiro momento, e esclarecido, em momento posterior.
Walter Benjamin (2000), pensando a cultura da modernidade, resgata-nos a modalidade de olhar baudelaireano que procura descobrir o que seriam as verdadeiras razões existenciais do ser humano em franca época de territorializações tecnológicas, com todas suas decorrências de desumanização. Esse contexto, de consolidação fabril e tecnológica, coloca as subjetividades em regime de estupor, de incompreensão, além de investi-las da condição de instância alienada de produção e de consumo em relação ao que acontece em seus foros íntimos, com os demais seres e com o aqui e agora em que irremediavelmente estão inseridas.
A Paris de Baudelaire e a Europa de Benjamin não tinham ainda o mundo cibernético que conhecemos hoje. Computadores e suas interfaces variadas existiam apenas em embriões de projetos teóricos. No entanto, já existiam as redes sociais que juntavam pessoas em pólos de interesses afins.
Contemporaneamente, estamos em densa era da vida humana estabelecida na e pela realidade cibernética. Nosso cotidiano virtualizou-se de modo factual, corroborandoa mais arrojada ficção científica sobre o tema. O corpo humano ganhou novos membros, agora cibernéticos, que à moda dos apêndices, tornaram-se essenciaisa uma vasta gama de atividades. Usamos editores de textos, lemos jornais e revistas, acessamos rádio e televisão, acompanhamos blogs, fotoblogs e afins, programamos nossa vida de acordo com variados softwares; enfim, realmente nossa vida está impregnada e, mesmo, está sendo cartografada pelo universo cibernético.
De dispositivo tecnológico de difícil acesso, o computador tornou-se instrumento de registro, acúmulo e distribuição de dados das mais heterogêneas naturezas, meio de criatividade para artistas e congêneres, e, de modo instigante, meio de comunicação e subjetivação pessoal.
Interessa-nos de perto esse tema da comunicação e subjetivação pessoal. Entre os variados programas para tais fins, escolhemos a rede social do orkut para refletirmos sobre suas estratégias midiáticas e as conseqüências que elas ocasionam na formação e no estabelecimento das subjetividades contemporâneas. Se por um lado esse campo cibernético de rede social cria condições para enriquecimento da vida humana, por outro, também mantém estratégias de adestramento e alienação das subjetividades que a ele estão expostas.
Vamos, pois, a essa rede social, na qual um grande número de usuários brasileiros estão imersos diuturnamente. Se de início nosso olhar foi de flânerie, com entradas e uso lúdicos do dispositivo cibernético que é o orkut, em seguida, nosso olhar procurou e procura meios objetivos para descrever, analisara estruturalidade e funcionalidade dessa poderosa ferramenta encarregada da construção/manutenção de determinadas formações subjetivas.
Essa rede social, que é o orkut, dá seus primeiros passos no campo de uma vasta e complexa gama de instrumentos midiáticos. Mesmo sendo seus primeiros passos, parece que tais passos já indicam o gigantismo da rede e de sua influência junto a uma grande contingente de usuários. Tal dispositivo midiático foi criado pelo turco Orkut Büyükkokten em 2004, nos laboratórios do Google (daí o nome da tal rede!). Rapidamente disseminou-se pelo mundo inteiro, antes nos EUA e em países europeus, para em seguida ser adotada (ou seqüestrada?) com grande vigor por países como o Brasil e a Índia.Atualmente, o Brasil é o país com o maior número de usuários dessa rede, contabilizando mais de vinte e três milhões de usuários.
Seu objetivo oficial era o de oferecer condições virtuais para que seus usuários estabelecessem novas amizades, encontrassem pessoas com atividades afins e mantivessem os vínculos de amizades já existentes. Sabemos que tais funcionalidades foram muito ultrapassadas em seu intento inicial. Um rol de numerosas outras atividades pode ser percebido nas ações dos usuários de hoje. Porém, uma das mais importantes funções de tal rede é a de propiciar condições para que fluxos subjetivos adentrem no campo do ciberespaço, estabelecendo nesse espaço condições existências variadas.
A princípio refletimos sobre os ganhos que essa rede traz aos seus usuários: encurtar distâncias; redescobrir pessoas do passado; cultivar vínculos afetivos; destruir vínculos afetivos; conhecer novas pessoas; conhecer novos lugares e situações, através da leitura de recados seus e alheios; bem como conhecer lugares, objetos e referenciais desconhecidos através dos álbuns de fotografia; apreciar músicas e vídeos de participantes da rede; entre tantas outras modalidades de vínculo e produtividadede natureza afetiva e social.
CARTOGRAFIAS CONSERVADORAS
Como qualquer programa do mundo virtual, o orkut assemelha-se a uma plataforma com lugares accionais pré-estabelecidos. O usuário, ao inscrever-se, recebe espaços nos quais pode atuar. Alguns desses espaços, no início das atividades dessa rede, eram de uso obrigatório, como a identificação pessoal e o país, entre outros. Porém, com o decorrer do tempo, vários espaços propostos pelo programa deixaram de ser preenchidos pelos usuários. Apesar disso, a estrutura realmente é fixa nas propostas de se oferecer um quadro geral, social, profissional, e pessoal, além das formas de contato (endereço e telefone) entre os membros da rede.
Pragmaticamente, o usuário da rede possui campos identitários que podem ser predominantemente preenchidos por ele e, indiretamente, pelos outros membros de sua rede. Os campos mais significativos dizem respeito ao caderno de recados, à rede de amigos, aos álbuns de fotografia, aos vídeos e às comunidades. Tal modelo pretende dar conta de certa integralidade subjetiva, tratando-se, pois, da tentativa de efetivação de um ideal de representação da subjetividade que entra no jogo dessas específicas relações cibernéticas.
Esses espaços identitários fornecem rígidas diretrizes para a ação do usuário, pois ele não tem permissão para alterar os parâmetros da estruturalidade que é dada de modo apriorístico e assegurada por um código de regras de funcionamento. Muito menos o usuário tem condição de modificar os pontos centrais do que seria a funcionalidade esperada pelo programa. Um dos poucos momentos de liberdade accional do usuário é a sua opção de escolher as pessoas que irão participar de sua rede. Mesmo nesse tópico, o programa estrategicamente lhe oferece um número considerável de usuários com os quais supostamente o perfil específico poderia se relacionar.
Em seus primórdios, o orkut exigia que a entrada de novos usuários fosse feita mediante convite de quem já era membro. No entanto, posteriormente, permitiu-se que o próprio usuário registrasse-se e começasse a fazer sua própria rede, sob parâmetros já dados.
Vimos que os espaços construídos elaboram um roteiro pré-fixado de uso. Esses roteiros estão em franca mutação que, aparentemente, surgem das necessidades ações sugeridas pelos membros ou pelo misterioso escritório- central do orkut. Se no primeiro ano, as regras de uso apresentavam-se dacronianas, nos anos seguintes, novos mecanismos de ação foram sendo implementados. Em 2008, como se vê no histórico do programa, mais de vinte novos procedimentos foram desenvolvidos e aplicados.
Desses procedimentos, os mais notórios dizem respeito à consolidação da privacidade do material do usuário em relação à rede geral e a sua rede específica. Se antes os recados, ponto nevrálgico desse tipo de rede social, eram visíveis para toda a rede, atualmente há a opção de deixá-los visíveis apenas para rede específica; ou, então, apenas para algumas pessoas dessa rede específica. O mesmo ocorre com os álbuns de fotos, com os vídeos musicais e outros arquivos de dados responsáveis pelo exercício identitário via socialização.
Como apontamos antes, a estruturalidade do orkut cria espaços existenciais apriorísticos. Campos como dados gerais, sociais, profissionais, pessoal, entre outros de menor visibilidade, direcionam o usuário a localizar-se como subjetividade substancial e cêntrica. O conceito de personalidade usado é aquele da psicologia e da filosofia positivistas que asseguram ser o sujeito um conjunto fechado de características estabilizadas por um rigoroso princípio de conservação.
Dessa forma, um perfil de usuário no orkut deveria corresponder à imagem simétrica que deveríamos ter de nós mesmos ao nos olharmos em um límpido espelho. Teríamos, como nos ensina Jacques Lacan (2001) a ilusão de uma integralidade físico/subjetiva como aquela da criança que se sente singular diante de um espelho e, consequentemente, sentir-se-ia singular diante do mundo a sua volta. A sensação de integralidade e de individualidade criaria o sentimento de pertença egocêntrica, que separaria a dimensão interior do sujeito, o seu foro íntimo, daquela dimensão da exterioridade coisal representada pelos outros sujeitos e pelo mundo no qual a subjetividade egóica-especular estaria inserida.
O dispositivo cibernético do orkut é programado para encenar essa integralidade do sujeito da ação. Sua contrapartida são os outros variados mundos subjetivos com os quais se abrem os vínculos existenciais. Nessa relação, como já mencionamos, um dos básicos princípios reguladores de tais relações é o princípio da conservação. O usuário produz suas relações, preenche os campos permitidos com seus dados e mantém sua produtividade sob os parâmetros de equilibração e conservação.
Quando surgem mais mecanismos que consolidam o contexto de privacidade do perfil do usuário, adensa-se a sensação e o sentimento de estruturação verticalizada da subjetividade. O sujeito teria, então, encontrado seu verdadeiro eu, ao lado de pessoas com as quais simetricamente se identifica. Essa verticalização quantitativa e qualitativa acentuaria a ilusão da imagem especular da qual Lacan tratou.
A ilusão do ego centrado seria um dos resultados centrais dessa rede social específica e de outras redes sociais similares que pouco se diferenciam quanto à estruturalidade e funcionalidade. Quando abrimos um perfil de usuário do orkut, temos as linhas de força da construção de um campo egóico. Aparentemente todos os dados ali registrados convergem para a construção de um campo existencial que não permite margens para interpretações ambíguas. A subjetividade exposta estaria totalmente marcada por uma racionalidade, por afetos e instintos que deveriam ser previsíveis. Mesmo quando não conhecemos o dono do perfil pessoalmente, pelos seus dados pessoais, dados profissionais, fotos, músicas, comunidades e sua rede de amigos, teríamos dados suficientes para elaborarmos uma cartografia bastante previsível e confiável do ponto de vista relacional.
Nesse quadro, temos que o orkut é uma realidade cibernética que, em um primeiro momento de descrição e análise, não contribui para descolamentos existenciais verdadeiramente produtivos, já que sua roteirização apriorística impediria o usuários de abordar outros campos accionais de acordo com seus interesses mais verticalizados e menos padronizados. A padronização do roteiro de ação determinaria um empobrecimento do exercício de criatividade, de produtividade, de imaginação, enfim, de enriquecimento subjetivo, social e, naturalmente, político.
Ao lado da constatação fácil de que tal rede de relacionamentos articula e consolida cartografias subjetivas conservadoras, há ainda a constatação de que essa rede gera conseqüências imediatas no mundo cotidiano de seus usuários. Como qualquer outro circuito de comunicação, o orkut gera conseqüências mais do que virtuais, ele gera conseqüência bem palpáveis, tais como: encontros reais; agendamentos de compromissos; contratos de variadas ordens; compromissos os mais heterogêneos; agenciamentos heterogêneos do desejo. Ou seja, sua ação dinamiza a vida real. E talvez tal dinamismo venha a se tornar mais potente do que os registros de conteúdos e sentidos veiculados por toda uma mídia pré-redes virtuais.
Disso surge a necessidade de compreendermos a estrutura e funcionalidade desse mecanismo que, ao contrário do exercício de olhar poetizado por Baudelaire, acaba por ancorar as subjetividades em situações que ela desconhece, pois que se encontra alienada pelo processo em que se insere.
CARTOGRAFIAS EMANCIPADORAS E LIBERTÁRIAS
Do conceito de subjetividade cêntrica e substancial, contestado por Lacan e por tantos outros pensadores movidos por uma epistemologia da subjetividade em constante fluxo, somos levados para a dimensão do sujeito caracterizado por seu devir, conceito este que surge na esteira dos estudos de Gilles Deleuze (1995, 1996, 1997). A subjetividade do devir seria aquela instância em constante movimento de interpenetração com os seres (de qualquer natureza e ordem) que estão em seu campo de contato direto ou indireto.
Pessoas identificam-se com pessoas, sob o clássico enfoque ontológico. Na contemporaneidade, sabemos que pessoas também se identificam com animais, com vegetais, com seres do reino mineral, com produtos e programas criados pelas variadas tecnologias. E se, em um primeiro instante, podemos acompanhar o usuário do orkut sendo direcionado, pelo agenciamento de enunciação (GUATTARI, 2001) que é o roteiro pré-fixado de ações, em momento posterior, acompanhamos essas identificações assumindo também a natureza de devir heterogêneo, inclusive o devir maquínico.
Sabemos que Animais já têm seus perfis no orkut. Donos amorosos, e similares, dão um lugar de destaque aos seus cães, gatos, aves, plantas, frutas entre outros seres e coisas, que passam a ser titulares de perfis, de comunidades, de fotos e vídeos. Ou seja, a subjetividade antropocêntricadesloca-se em devires animais e maquínicos, apesar dos rigores antropológicos em se valorizar a condição humana como grandeza existencial que deveria ocupar o topo da hierarquia.
Subjetividades em devires podem funcionar como estratégias para burlar territórios existenciais fechados pela estruturalidade e funcionalide dessas redes sociais. Se a idéia de egoicidade íntegra e individual, apesar dos vínculos estabelecidos pela rede, é o motor do sistema,possibilidades de identificação com variados seres e dispositivos minimizam o preenchimento das máscaras comportamentais previsíveis.
Desse modo, o princípio de conservação é colocado em plano inferior. Outro princípio, o da alteridade identitária do constante movimento intersubjetivo, marca as ações do usuário que pode deslocar-se do campo de sujeito apassivado e alienado para o papel de sujeito mais ativo e essencial móvel de ações que preencherão espaços de acordo com intentos não exclusivamente padronizados.
Pragmaticamente, nossas sociedades de controle não apreciam tais liberdades de ação e posicionamento. Sabemos que departamentos pessoais de variadas empresas, e órgãos afins, já entrevistam candidatos a vagas de trabalho, tendo o orkut do candidato nas mãos. Normalmente, tais empresas, e correlatos, são dirigidas por noções de personalidades cêntricas, previsíveis e equilibradas do ponto de vista subjetivo e social. Assim, linhas de representação tradicionais e conservadoras dão os pontos positivos que criarão as condições para queo currículo cibernético da pessoa seja aceito ou recusado.
Como se estruturariaum currículo cibernético, como o perfil de um usuário do orkut ou de redes similares, recusado por instituições que conservam a tradição de uma sociedade? Muito provavelmente os dados recusados seriam aqueles que apresentam explicitamente elementos que atentam contra a moral e os bons costumes. Registros de ordem sexual, econômica, étnica, religiosa, entre outras, quando não contemplam os valores estabelecidos pelo senso comum, estão entre os grandes complicadores de um retrato pessoal estruturado e veiculado pela rede social.
Além dos materiais explicitamente recusados, teríamos aqueles materiais de recusa mais implícita, tais como aqueles constituídos por uma heterogeneidade semântica presentes nos registros. Recados, no caderno de recados, de natureza variável e com conotação moral variada, causam mal-estar. Fotos de referentes exóticos ou não-aceitos causam mal-estar. Comunidades com dados perturbadores causam mal-estar. E assim por diante. Esse mal-estar surge da estranheza frente ao imprevisível e, por vezes, à radicalidade do outro que pode ser bem diferente da constituição dos valores padronizados de nossa sociedade. E não estamos aqui a falar sobre registros de fatos e situações de notória infração, tais como pedofilia, sexo explícito, racismo, preconceito religioso, entre tantas outros de cunho recorrente em tais redes. Estamos a pensar em registros de dados que não possibilitam formamos um perfil centrado e previsível do usuário.
Se, por exemplo, temos, em uma lista de comunidades, a expressão de amor por um time de futebol, achamos contraditório que também aí haja a expressão de amor por um time rival. Se temos a expressão de um valor determinado, logicamente a expressão de um valor antagônico já nos causaria a desagradável sensação de estranhamento, oriundo o pensamento dualista que norteiam nossas noções de valores, que funciona como um poderoso parâmetro de avaliação moral do usuário.
Esse estranhamento, no entanto, é o sintoma de que a subjetividade estaria deslocando-se rizomaticamente (DELEUZE: 1995) pelos desvãos do dispositivo cibernético que a tenta controlar com todas as suas estratégias de padronização.
A subjetividade rizomática espraia-se por possibilidades de ação que o sistema não consegue controlar ainda. Dessas possibilidades, temos produções subjetivas capazes de descobrir e usar condições pragmáticas de enriquecimento existencial, sem ficarem presas à previsibilidade dogmática de uma cartografia existencial mantida pelo princípio de conservação.
Não entramos aqui, temos que ressaltar, no campo de atividades completamente anti-sociais que vários agenciamos de enunciação de sentidos e de realidades são capazes de fazer. Subjetividades não estão acima do bem e do mal para darem curso livre a sua complexa energia de vida. Prendem-se, sim, a diretrizes da vida coletiva que, sabemos, não têm a obrigação de ser tão limitadas quanto às possibilidades de ação do sujeito.
Nesse contexto de possíveis desterritorializações, algumas práticas podem enriquecer o uso do dispositivo cibernético que é a rede social. Os devires animais, coisais e maquínicos criam um campo aberto a novas experiências, sensações e sentidos. O uso artístico dos campos pré-fixados desmobiliza a assepsia imposta pela comunicação pragmática. A variabilidade de interesses, demonstrada pelas comunidades adotadas pelos usuários, emolduram desejos de deslocamentos que podem estabelecer produtividades de outras ordens, mesmo ordens fora do circuito capitalista de existência. A heterogeneidade do gosto musical, expressa na coleção de vídeos, cria a saudável iconoclastia do usuário frente a inumeráveis universos de produção que sua sociedade pode lhe oferecer.
Vários perfis das redes sociais são verdadeiros ateliês de produções artísticas já concluídas ou in progress. Outros perfis funcionam como espaços nos quais uma grande gama de temas são discutidos de modo sério, criativo e cooperativo. Ou seja, um mecanismo criado para massificar comportamentos, em vários contextos pode ser desconstruído e reconstruído sob condições que possibilitam e incentivam a constituição de subjetividades em rico devires.
O orkut, tal qual um ser vivo, está em constante evolução. De sua natureza de agenciamento coletivo de enunciação alienadora de subjetividades em série, pode deslocar-se em instrumento de comunicação em que a liberdade de escolha e de ação possa talvez ser a dinâmica recorrente.
Atualmente, essa capacidade libertária parece enfraquecer-se diante dos variados mecanismos cautelares que o sistema implementa. Chaves de segurança são criadas, como já mencionamos, para trancar cadernos de recados, álbuns de fotografias, vídeos, depoimentos e outros espaços de registro identitário. Uma forte tendência de privatização do arquivo de dados configura o atual usuário. Torna-se raro vermos perfis francamente abertos, nos quais os usuários colocam suas constituições pessoais nessa grande “ágora” cibernética. As sub-redes estão se fechando cada vez mais e a espontaneidade coletiva é obrigada a dar lugar a estratégias cautelares que são predominantemente de ordem moral e pragmática.
CONCLUSÃO
Voltamos ao olhar de flânerie, exercitado por Baudelaire, e sistematizado por Benjamin frente à massificação da vida feita pelas cartografias sócio-político-culturais da modernidade. W. Benjamin, conta-nos sobre esse olhar desligado dos excessivos pragmatismos, quando anda por uma grande cidade européia:
Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas, que anos a fio eu evitara, tornou-se para mim, de um só lance, abarcável numa visão de conjunto, quando um dia uma pessoa amada se mudou para lá. Era como se em sua janela um projetor estivesse instalado e decompusesse a região com feixes de luz.
(2001, p.75).
Nossas cidades contemporâneas também estão recriadas na rede social do orkut e em outras redes sociais. Esse espaço cibernéticoreflete quase que simetricamente a realidade física na qual estamos inseridos. Há, pois, como no espaço da vida cotidiana, diretrizes de massificação e de alienação do sujeito. Nesses espaços existenciais também existem diretrizes que fomentam o esclarecimento e a liberdade para as subjetividades transformarem suas estruturalidades e funcionalidades que naturalmente deslocam-se de modo rizomático nos variados devires em que sãos feitas.
Um olhar de flânerie, seguido por uma postura analítica e crítica, permite-nos ver o complexo e intenso mundo criado pelo dispositivo do orkut, e redes afins. Com essa leitura caridosa, no sentido filosófico do termo, não demonizamos essa poderosa ferramenta de agenciamentos de enunciação subjetivo-social. Ao contrário, dimensionamos nossas heterogêneas cartografias subjetivas em um campo existencial cibernético capaz de funcionar como locus e meio para a efetivação de produtividade, de criatividade e de deslocamentos necessários que tornam o sujeito agente competente e consciente de sua própria ação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BENJAMIN, Walter. Ouvres III. Paris: Gallimard, 2000.
DELEUZE, Gilles. Mil Platôs. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
_______. Mil Platôs. Vol. 3. Trad. deAurélio Guerra Netto et al. São Paulo: Ed. 34, 1996.
_______. Mil Platôs. Vol. 4. Trad. deSuely rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.L'Anti-Oedipe: capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 2005.
GUATTARI, Félix. Da produção de Subjetividade. In: PARENTE, André (org). Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Ed. 34, 1993.
JAKOBSON, Roman. Linguagem e comunicação. São Paulo: Cultix, 1971.
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 2001.
PARENTE, André (org). Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Ed. 34, 1993.
Wikipedia. Orkut. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut >. Acesso em 25 mai. 2009.
Professor da Universidade Federal de Goiás, nas áreas de Teoria da Literatura e Estudos Multiculturais (gênero, cinema, ecologia e cartografias da subjetividade)