Renato Mezan, em seu livro Freud, o pensador da cultura (1986), lapida o sentido do museu em nossa sociedade, quando explica o contexto sócio-político-cultural da Viena à época de Sigmund Freud e da sua invenção da Psicanálise. Acreditando que a época funciona como motor cartográfico inerente à formação do homem e de seu pensamento, Mezan explica como Viena transformara-se em um museu a céu aberto (sociedade refinada mas de grande superficialidade nos comportamentos humanos e arredia em relação às inovações científicas, tecnológicas e artísticas); situação contraditória, pois toda o restante da Europa sacudia-se aos sabores das tempestades inovadoras do final do séc. XIX e começo do Séc. XX.
Quando falo da situação de museificação, estou falando do museu-sarcófago, mumificador de qualquer objeto/instação/manifestação artísticos. Daquele museu que juntou centenas, milhares de obras de todo tipo e estilo artísticos e que os governos tratam, apesar do descaso econômico, como a jóia da coroa da memória da nação.
O paradoxo é que um arquivo que registra o processo evolutivo da vida de um povo esquece/interrompe o fluxo dessa vida arquivada que reflete e deveria ser a extensão direta da vida fora de suas paredes. Os dado/objeto/contexto museificados são retirado da circulação da usinagem semântica que brota das relações entre os homens ainda vivos e aqueles que ainda virão.
Grades, correntes, cordões de isolamente, ausência de janelas, luz artificial, guardas e guardas, sensores, modernos sistemas de seguranças formam a maquinária para isolar completamente o arquivo do museu das pessoas que estão constantemente criando realidades.
Esse sentimento de museificação, em ótica filosófica, relaciona-se com as condições do mesmo e do diferente: ou seja, o mesmo é o fenômeno aceito pelas regras de bom tom/utilidade/beleza de uma sociedade, enquanto o diferente é o fenômeno que não foi aceito por esse ideário ou então ainda não é compreendido o suficiente para fazer parte do rol de obras/instalações que já foram escrutinadas e aceitas como exemplares de valores oficiais da normalidade da cultura específica. Nesse sentido, a museificação clássica corta o fluxo do desejo; ou melhor, enquadra esse fluxo em caminhos rigorosamente cartografos em que a usinagem de sentidos é controlada e minimizada em sua capacidade produtiva.
Mezan discute o conceito para explicar a cidade de Viena, na época que antecede o nascimento, a conseqüente educação de Sigmund Freud, bem como a “invenção” da Psicanálise.
O fragmento de seu texto é saboroso:
“O museu, com sua disposição tranqüilizante, em que as obras coexistem umas ao lado das outras, protegidas do público pelas molduras e cordões de isolamento, pode ser igualmente visto como o lugar em que a arte é neutralizada, exatamente por meio da sua glorificação. A função do cordão de segurança pode ser interpretada como a de proteger, não a obra do vandalismo do espectador, mas este do poder de sedução e de inquietação contido na obra. Ao arrancá-la do contexto em que deveria produzir seu efeito inovador ao apresentá-la como exemplo de um etilo ou de um autor, o museu elimina este efeito e faz surgirem as obras como que flutuando no vazio, desprovidas mesmo da finalidade decorativa à qual se destinavam originalmente. Nesta perspectiva, é sugestivo lembrar que a visita aos museus de arte se faz geralmente acompanhada de um comentário, seja falado por um guia, seja escrito num texto; não é apenas a falta de familiaridade com o que está exposto naquelas salas que explica a necessidade do comentário, posto que esta própria falta de familiaridade precisa de explicada. Que se tenha tornado necessário ensinar a ver o que mostra um quadro ou uma estátua diz muito sobre esta função de neutralização da arte, já que a melhor forma de se escudar do sentido de uma produção humana é ignorar a forma pela qual ele se materializa, num estilo determinado e num código expressivo particular. Aqui como em tantas outras ocasiões, a ignorância serve propósitos mais sutis e obedece a razões emanadas da resistência” (p. 28)
Pensei nesse contexto de museificação quando Margareth, Alexandre, Francisco e eu (professores universitários e tals!) montamos nossa exposição de fotografias, “Fragmentos”, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Fotogramos cidades, monumentos, pessoas de quatro núcleos temáticos: Paris, EUA, Itália e Brasil e desejávamos mostrar aos nossos alunos como eles podem criar objetos artísticos quando fogem dos roteiros de turismo convencionais que o contexto midiático nos impõe.
No meio da montagem (trabalho braçal ao lado da curadoria artística!), começamos a discutir sobre exposições (museus!) e a sua relação com o público. Comentei sobre a necessidade da interação com o público que é o único responsável pela vida ativa da obra de arte. Sugeri que o contato entre expertador e fotos fosse dinâmico, com alguma espécie de contato, de vínculo, de interação maior entre as fotos expostas e o observador/fruidor.
Um de meus colegas disse, no entanto, que a obra de arte deve ser protegida de interações desse tipo que acabam por criar condições para ataques e ações afins, e que o valor intríseco da obra de arte (ou similar) deve ser resguardado de qualquer forma.
Minha resposta ao assunto apontou para uma tendência que, aos poucos, vem se consolidando no mundo inteiro quanto aos museus e congêneres: A inevitável interação entre obra/instalação e expectador/fruidor. Inevitável porque é a única forma de trazer pessoas vivas para o museu, dinamizando-o, pois. Pessoas vivas que em minutos, horas, dias, semanas ou por toda as suas vidas entrarão e dinamizarão as cartografias museificadas, mesmo que isso possa causar danos às obras que, mais do que viver em si mesmas e para si mesmas, vivem para os vivos.
O museu fica vivo quando pessoas vivas agem, de alguma forma, sobre as obras/instalações. Essa ação pode ser de vários tipos, como o fatídico “tocar” as obras, fotografar, arrepiar-se diante delas, comprar uma cópia da obra no bazar do museu, mudá-la de posição (coisa quase impossível! rs), vandalizar a obra de arte (nada recomendável, mas muito interativo do ponto de vista narcísico), sentar ao lado, em baixo, em cima da obra/instalação, filmar, fazer um sarau ao lado de, fazer um piquinique ao lado de, deitar e dormir ao lado de, fazer aniversário, casamento, batizado ao lado de (imagem um casamento na frente da Mona Lisa?!).
No Brasil, museus como o da Língua Portuguesa, em Sumpaulo, estão dinamizando essa relação interativa. Usam mídia imagética em movimento constante, interfaces computatoriais, móbiles, corredores vivos, enfim, um contexto no qual o expetador/fruidor ativa também sua potência criativa e têm condições para insuflar vida no objeto/instação artístico que fora ali museificado. Tal cartografia rizomática (porque suas raízes não são definidas em um apriori , mas sim se dinamizam em várias direções e extratos socias, culturais, políticos e subjetivos difentes) atrai públicos de variadas ordens: crianças, adolescentes, adultos, velhos, negros, brancos, pretos, brancos, (índios parece que ainda não vão lá!), homens, mulheres, gays e afins. A heterogeneidade social ativa prestigia e aprova com muita ênfase essa modalidade de museificação. Museifica-se, mas há sangue correndo nas veias do reduto que objetiva controlar a polivalência semântica da obra.
Em contrapartida, um museu como o MASP (e semelhantes como o Louvre, a Tate Galery, o Moma e tantos outros), classudo e sério, esvazia o poder interativo e criativo do visitante. Concreto frio. Sistema de segurança arrogante (porque altamente visível), Guardas burocráticos e deselegantes, linha de segurança (para não se aproximar da obra) muito definida, luz muito artificial que nos tira a idéia do tempo da vida real do lado de fora.
Assim, existem pessoas (como eu, que mesmo rodando no interior da caixa de concreto sem vida por horas e horas!) que preferem sair do prédio para ficar no vão do MASP... o grande vão do MASP! palco de tanta vida, de tantas tribos, de tantos interesses, de tanta energia que deseja ardentemente invadir o museu-sepulcro.
Fico no vão do MASP, também por horas e horas... e sei que de vez em quando um menina de um quadro de Renoir desce de sua prisão na exposição permanente e vem flanar comigo pelas subjetividades das pessoas que também frequentam o vão do MASP e a Av. Paulista.
Bom seria aquele museu que tivesse um corredor ligando-o as nossas casas, as nossas escolas, aos nossos shoppings, as nossas igrejas, enfim, as nossas subjetividades em constante formação e fluxo.
5 comentários:
jorge, também adoro ficar no vão do masp e na escada da gazeta vendo a vida passar, acontecer. e, muito sinceramente, várias vezes os "apreciadores" das exposições - aquela fauna deliciosa de uma megalópole - são mais atraentes que as obras dispostas tão simetricamente, com espaços tão exíguos pra gente se deleitar. então me divirto com as pessoas e seus comentários. mas, confesso que quando vi a vitória de samotrácia, achei que ela voaria pelo hall. me sentei na escada e chorei que nem criança. pode?resisti à museificação. abraço
eugênia
quando der:
bichodesetecabecas-ge.blogspot.com
Jorge,
Fui aluna da turma que se formou em 2003 (Flávia, Jane, Márcio, Natércia...), você me apresentou Madredeus e me ensinou a descascar uma obra e saboreá-la antes de pensar em usá-la como ponte a serviço da crítica. Também fui da sua primeira turma de cinema e literatura no mestrado, excelentes lembranças! Quando converso com a Gê relembro de tanta coisa boa... tenho saudades do tempo em que vivia de literatura.
Esse texto é ótimo! Sabe que me apaixonei pelas moças de Modigliani após conhecê-las no Malba (Buenos Aires) e recentemente tenho estabelecido com elas obras uma relação quase que promíscua no meu espaço virtual. Seria um prazer recebê-lo por lá:
www.mareseressacas.blogspot.com
Grande abraço,
Fernanda.
Quando a mocinha do Renoir vier flanar com você, posso te chamar de John Nash, posso? rs...
Enfim a defesa das minhas compulsões inconfessáveis: posso por só um dedinho, ah, vai... tá limpinho, ó.
- Não.
Mentalmente: Ah, fezes! =(
Ver, olhar, gostar além de prazer é Dom. Visitar museus e se deleitar com as obras expostas neles tbm. Previlégio de poucos. Embora a vida clame vida, sou um destes que ao olhar os colhedores de café de Portinare vê qua ali a vida vibra como se tivesse ido ao vivo ve-los in loco.
Interessante a interação e muitas vezes preocupante. É de se entender seu colega de exposição defender que as obras sejam resguardadas. Mas cada dia vemos a interação ganhar espaço né Jorge e com isso ganhar público. Acredito que os artistas criadores fiquem contentes com essa interação, afinal, é ver a reação do outro sobre o seu.
Quanto maior a interatividade maior o interesse do público e mais frequentados os museus, penso.
Abraço
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