terça-feira, 17 de março de 2009

Like a Rolling Stone - Bob Dylan



Once upon a time you dressed so fine

You threw the bums a dime in your prime, didn't you?

People'd call, say, "Beware doll, you're bound to fall"

You thought they were all kiddin' you

You used to laugh about

Everybody that was hangin' out

Now you don't talk so loud

Now you don't seem so proud

About having to be scrounging for your next metal.


How does it feel

How does it feel

To be without a home

Like a complete unknown

Like a rolling stone?


You've gone to the finest school all right,

Miss Lonely

But you know you only used to get juiced in it

And nobody's ever taught you how to live on the street

And now you're gonna have to get used to it

You said you'd never compromise

With the mystery tramp, but now you realize

He's not selling any alibis

As you stare into the vacuum of his eyes

And say do you want to make a deal?


How does it feel How does it feel

To be on your own

With no direction home

A complete unknown

Like a rolling stone?


You never turned around to see the frowns on the jugglers and the clowns

When they all did tricks for you

You never understood that it ain't no good

You shouldn't let other people get your kicks for you

You used to ride on the chrome horse with your diplomat

Who carried on his shoulder a

Siamese cat Ain't it hard when you discover that

He really wasn't where it's at

After he took from you everything he could steal.


How does it feel

How does it feel

Ham on your own

With no direction home

Like a complete unknown

Like a rolling stone?


Princess on the steeple and all the pretty people

They're drinkin', thinkin' that they got it made

Exchanging all precious gifts

But you'd better take your diamond ring, you'd better pawn it babe

You used to be so amused

At Napoleon in rags and the language that he used

Go to him now, he calls you, you can't refuse

When you got nothing, you got nothing to lose

You're invisible now, you got no secrets to conceal.


How does it feel

How does it feel

To be on your own

With no direction home

Like a complete unknown


Like a rolling stone?

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio



Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento
- Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

(Fernando Pessoa - Ricardo Reis)

Fernando Pessoa e Win Wenders sob o céu de Lisboa



Gérard Genette, em sua obra Palimpsestes (1982), afirma que todo texto é estabelecido no entrecruzamento com outros textos, sendo, pois, impossível encontrar aquele que seria o texto original ou demarcar o texto como um fenômeno intrínseco. Dessa forma, seu conceito de transtextualidade implica na condição da existência implícita ou explícita de um diálogo entre as produções artísticas. Esta estruturação, baseada no caráter de funcionalidade relacional é indicada para os textos literários; no entanto, podemos estendê-la também às naturais relações que envolvem as adaptações cinematográficas de textos literários para o cinema.


O texto literário de base será o que Genette denomina de hipotexto, enquanto o texto feito sob sua influência, de semiose idêntica ou diferente, será denominado de hipertexto. As possibilidades de hipertextualidade acontecerão em regime de transformação ou de imitação. O primeiro tipo diz respeito a mudanças que ocorrerão nos elementos estruturais e semânticos a ponto de criar situações e condições de inovações na obra derivada. O segundo acompanhará de perto a obra de base, não lhe alterando substancialmente o conjunto de valores temáticos e formais. Soma-se a isto o fato de que tanto a transformação quanto a imitação poderão ocorrer de forma lúdica, satírica ou séria, sendo que tais condições podem hibridizar-se, principalmente nos casos em que a índole da obra artística é dirigida por estéticas modernas e pós-modernas.


Neste quadro de transtextualizacão intersemiótica de contexto transformacional, sério e, ao mesmo tempo, lúdico, observamos o filme do diretor alemão Win Wenders, O céu de Lisboa (1995), desenvolvendo suas estruturas e linhas de sentido sob a influência do projeto heteronímico da poesia de Fernando Pessoa. Mesmo que os elementos da poesia tenham suas peculiaridades de gênero, tais como cunho lírico, ambiências sentimentais, afetivas e pulsionais, eles também podem funcionar como força motivadora para os núcleos accionais prosaicos que estruturam a diegese fílmica.


O hipertexto fílmico oferece-nos a estória de dois alemães, Winter, um engenheiro de som, e Friedrich, um diretor de cinema. Friedrich dirige-se a Lisboa para rodar um filme-documentário sobre essa cidade. Depois de semanas de filmagem, solicita o auxílio do engenheiro de som que prontamente aceita e viaja para Portugal. No entanto, ao chegar, Winter não encontra o amigo no quarto em que ele deveria estar hospedado. No lugar do amigo, encontra rolos de filmes com registros de lugares e de pessoas, além de livros de poesia de Fernando Pessoa na mesa de cabeceira. O mote do filme passa a ser então a procura pelo amigo diretor que desaparecera. Enquanto procura, Winter convive com um grupo de crianças agenciadas pelo diretor para auxiliarem no seu projeto de filmagem, e com o grupo de fados Madredeus, encarregado de fazer a trilha sonora do filme.


Sem pistas do paradeiro do diretor, Winter começa a assistir aos fragmentos de filmes já feitos, além de sair pela cidade para registrar os sons que serão sincronizados às imagens já existentes. Dessa forma, a ação corre em tom de suspense e de metalinguagem. Essa segunda situação diz respeito ao fato de que o engenheiro de som relaciona-se com as crianças, que a pedido do diretor, filmam qualquer coisa que lhes venham à frente, apresentando-lhes a tecnologia dos sons do cinema e as razões pelas quais se produz um filme.


Importa-nos de perto, os períodos nos quais Winter volta para o quarto alugado e, no período de descanso, interessa-se por aqueles livros de poesia. Intrigado, começa a ler as poesias que também foram lidas por Friedrich e, dessa forma, começa a conhecer a Lisboa criada e ficcionalizada por Fernando Pessoa. Nessas horas, a ação principal é suspensa e mergulhamos no projeto heteronímico de Fernando Pessoa, de modo assistemático, que diz respeito de perto às estéticas de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.


Entre o projeto maior da poética pessoana, essas duas poéticas vêem à tona para configurar núcleos temáticos que dizem respeito, predominantemente, à subjetividade lírica produzida pela aparelhagem da tecnologia e da ciência dominantes na época. A primeira ótica preocupa-se em articular meios para assegurar a ingenuidade, a pureza e a liberdade do sujeito inserido em tal contexto. A segunda mostra-se contrária a esta preocupação, porque se alegra em imergir no universo célere, fabril e cosmopolita que a Europa da consolidação industrial propicia.


Winter descobre paulatinamente que pode conhecer a cidade de Lisboa também, e talvez principalmente, através da arte literária que, mais à frente, servirá de suporte para o projeto fílmico em curso. Noite após noite, lê a poesia de Pessoa. Em Alberto Caeiro, aprende que a época moderna adoece o olhar dos homens. Segundo esse heterônimo, o excesso de cultura impede as pessoas de sentirem as coisas, os fenômenos e os fatos como eles seriam verdadeiramente. O que o olhar abrangeria seria o simulacro dos referentes retirados de sua condição existencial natural e representados de modo categórico e ideológico pelos valores sócio-cultuais que moldam a capacidade da visão, bem como a dos demais sentidos. Vejamos um exemplo de como se desenvolve o pensamento poético desse heterônimo de Fernando Pessoa, em um dos poemas básicos de O guardador de rebanhos (1995):


II - O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de, vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar...

Em tal poema, podemos acompanhar o programa para a construção de um tratado do olhar humano, bem como de uma estética para o artista construir sua obra. Preocupa-se, aí, com a incapacidade do adulto voltar a olhar as coisas com o saudável e criativo olhar infantil que está ainda imune aos pragmatismos do mundo adulto. É intensa a constatação de que a educação, advinda de uma cultura consensual e massificada, acaba por oferecer modelos de percepção e de compreensão que criam cartografias existenciais limitadas.


O olhar, semelhante ao de um girassol, coloca-se diante do mundo com um desinteresse perante a dimensão cotidiana de produção de bens e de valores utilitaristas. O comportamento que dele surge dirige-se para a inocência da vida que se extasia diante da natureza e dos atos e gestos desinteressados. Dessa forma, cria-se como que uma possibilidade de voltarmos ao Éden, onde, supostamente, as atividades humanas tinham assegurado seu quantum energético para assegurar a continuação da vida.


Alberto Caeiro, como no ensina Lopes e Saraiva (1994), representa segmentos da cultura européia que desconfiam das promessas feitas pela civilização moderna. A ordem, a limpeza e a racionalização, pilares desta civilização, acabam por cobrar um preço muito alto aos homens civilizados. A vida nas grandes cidades, o trabalho fabril, as relações cosmopolitas, a velocidade das ações e produções, tudo isso criaria um entrave para o homem levar uma vida tranqüila, harmoniosa e feliz. A alegoria do olhar sereno e ateleológico do girassol funciona então como um aviso sobre o aprisionamento que as instituições sociais criam para as possíveis formações subjetivas libertárias.


Para Caeiro, considerado como o mestre dos demais heterônimos pessoanos, só o amor desinteressado é capaz de redimir a humanidade. Desta forma, o sujeito é recolocado em uma instância na qual o ego atenua-se em prol de uma vida mais sensorial, contemplativa e menos reativa, no sentido de uma produção contínua que acaba por usurpar as verdadeiras riquezas existenciais. Quando o ego é enfraquecido, pois já não se preocuparia com o acúmulo de riquezas exclusivas, a cooperação com a ecologia pessoal, social e da natureza, atingiria um fluxo saudável e equilibrado.


O outro pólo estético, que também configura uma modalidade de olhar e de existência, é o proposto pela poesia de Álvaro de Campos. Ao contrário do mestre Caeiro, esse heterônimo não se furta a usar os aparatos tecno-culturais que sua época lhe proporciona. Ao contrário disso, sua subjetividade representa todas as conquistas que uma Europa imperial, institucionalizada e tecnicista foi capaz de atingir. Álvaro de campos é a faceta pessoana do futurismo, do desvairismo, do cosmopolitismo pós-moderno, do culto ao progresso, dos sentidos múltiplos e infinitos, das sensações imperfeitas que refletem uma época de grandes avanços tecnológicos e de grandes fracassos sociais e morais, como as duas grandes guerras mundiais que devastaram o espírito da paz entre os povos e seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade.


Das várias fases temáticas de Álvaro de Campos, destaca-se aquela tida como futurista. Na esteira de Marinetti, o heterônimo fará grandes odes de louvação aos valores e feitos do homem moderno do Séc. XX. Destaque há de dado à Ode Triunfal e a Ode Marítima. Na primeira, serão louvadas as conquistas tecnológicas, científicas, mercantilistas e fabris. Na segunda, o caráter proteiforme do homem cosmopolita, a velocidade que recoloca em ordem surrealista as relações de tempo e espaço, e a consolidação dos países e povos em uma aldeia global.


Em relação a um tema de base desse segundo projeto poético, temos o caráter proteiforme da subjetividade, tal como nos poetiza esse fragmento de Ode Marítima (1995):


Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos,

Da faina transportadora-de-cargas dos navios,

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


O “eu-lírico” coloca-se na condição de corpo maquínico que aceita a fraternidade de todas as dinâmicas de máquinas que produzem bens de modo contínuo para necessidades reais e/ou fetichistas. A subjetividade não se vê vitimizada pela tecnologia e ciências que consolidam o progresso irremediável no qual o homem moderno se vê localizado e cartografado. A maleabilidade da técnica fabril é deslocada para o aparato subjetivo que, dessa forma, tem a sua mobilidade plástica assegurada em um contexto nunca antes vivido pela sociedade européia. Homem-máquina gozando seus poderes infinitos de modificar a vida e a natureza de forma acrítica e com intensidade sempre crescente. Nesse quadro, atividades artísticas não possuiriam um diferencial das demais produções maquínicas, já que seu quadro de produção também comportaria elementos de seriação no campo da distribuição e do consumo de massa.


Álvaro de Campos entra em comunhão com sua época compulsiva, produtiva, maquínica. Seus desejos abarcam o objetivo de sentir em sua pele as vidas de todas as pessoas que existiram, que existem e que existirão. Sua necessidade de ação rompe as fronteiras do cosmopolitismo convencional para abranger vivências de épocas e lugares diferentes, criando um palimpsesto surrealista de existência. Ao contrário do isolamento e da desconfiança do mestre Alberto Caeiro, Campos entrega-se genuinamente ao aparato do olhar e do comportamento moldado por todas as territorializações possíveis da cartografia nervosa e intensa de sua época.


Com esse substrato literário de magnitude estética e humanista, voltamos a seguir o engenheiro de som, de nosso filme em questão, por sua aventura em Lisboa. Ao lado do universo pessoano, Winter relaciona-se com as crianças que estranhamente ajudam no desenvolvimento do projeto cinematográfico de Friedrich e, aos poucos, junta pistas para encontrar o amigo diretor que sumira misteriosamente. Em um dado momento do filme, Winter encontra o amigo filmando com uma câmara presa a suas costas e registrando impressões orais sobre a cidade. O reencontro acontece e ele solicita explicações para a situação inusitada. Nesse ponto, percebemos que o filme atinge o seu ponto nevrálgico em relação ao tema que tenta abordar.


O diretor explica ao amigo que está surpreso com a sua vinda a Lisboa e que, dado mais relevante, alterara o objetivo de seu projeto anterior. Nas ruínas de um prédio de cinema em Lisboa, Friedrich conta a Winter que não queria mais fazer um filme convencional. Havia chegado, então, à conclusão de que o cinema se massificara em excesso e mesmo filmes de vanguarda estavam tornando as imagens, registradas em películas, produtos que não mais educavam e extasiavam o público.


Essa explicação do descrédito do diretor em relação à arte cinematográfica lembra-nos vivamente das reflexões feitas pela Escola de Frankfurt, principalmente aquelas feitas por Walter Benjamin em relação à cultura de massa, à massificação e destruição da aura da obra de arte e à necessidade de se voltar a produzir e a receber o fenômeno artístico segundo critérios que assegurem a importância da elevação e enlevação do espírito. Esse pensador da cultura nos ensina que devemos preservar a aura, que é o valor genuíno da obra de arte.


Benjamim, em seu ensaio intitulado L‘oeuvre d’art à l’ère de sa reproductibilité technique (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica), coloca-se frente à produção da fotografia e do cinema, entre outras artes de necessária e rotineira reprodução em série, para discutir o papel da obra de arte de uma época em que a indústria cultural massifica o produto artístico. A prática da multiplicação poderosa de objetivos artísticos dissolveria a alma da obra de arte. Sobre a alma, vista como aura, teríamos que se trata de:

une singulière trame d’espace et de temps: l’unique apparition d’un lointain, si proche soit-il. Suivre du regard, un après-midi d’eté, la ligne d’une chaîne de montagne à l’horizon ou une brance qui jette son ombre sur lui, c’est, pour l’homme qui repose, respirer l’aura de ces montagnes ou de cette branche. Cette définition permet d’aperceboir aisément les conditionnements sociaux auxquels est dû le decline actuel de l’aura. Il tient à deux circonstances, étroitement croissants des mouvements de masses

Para Benjamin, com um apuro poético e romântico em sua definição, a aparição única de uma coisa distante acabaria por ser destruída por duas circunstâncias que seriam advindas do fato de tais coisas serem ansiosamente desejadas e, por conseqüência, ficarem mais próximas para a sociedade de massa. A ânsia de possuir o objeto artístico, ou similar, em uma proximidade irredutível, abre caminhos para a necessidade crescente de reprodução, de cópia do que seria a obra original e única.
(BENJAMIN, 2000, p. 74).


Há, em nossa cultura, uma necessidade fetichista de possuir o objeto artístico, ou qualquer objeto semelhante que esteja exposto em alguma vitrine. Desta forma, unidade e durabilidade dão lugar à transitoriedade e à repetibilidade. Benjamin concluirá que: “Sortir de son halo l’objet, détruire son aura, c’est la marque d’une perception dont le ‘sens de l identique dans le monde’s’est aiguisé au point que, moyennant la reproduction, elle parvient à standardiser l’unique” (BENJAMIN: 2000, p. 76).


Friedrich, talvez projeção intensa dos conflitos de Wim Wenders, desta forma, comunga dos ideais propostos por Benjamin. Sua atuação estrutura-se no objetivo de purificar as imagens filmadas, tornando-as como aquelas percebidas pelo olhar infantil ou pela câmera colocada nas costas e que filma referenciais sem a influência do olhar civilizado e fetichista. Age como um Dziga Vertov da era contemporânea, além de querer disponibilizar seus filmes apenas para as gerações seguintes, já que o material feito não será visto por nenhum espectador vivo. Tais procedimentos, usados para refrear ou neutralizar os princípios da cultura de massa, estão na mesma natureza dos procedimentos adotados por Alberto Carreiro, resguardadas as diferenças de contextos estéticos e espácio-temporais.


Alberto Caeiro, se cineasta fosse, provavelmente faria uma depuração na tecnologia do cinema e produziria filmes em que o espectador tivesse condições de perceber a vida sem os aparatos ideológicos do dispositivo cinematográfico. Em tais filmes, o roteiro não teria a função de planificar aprioristicamente o que seria visto, a seqüência de ações não encaminharia para uma situação de ganho de algum valor que comprometeria a integridade da inocência dos homens perante si mesmo, perante os demais homens e perante a natureza na qual ele está inserido.


Winter escuta calmamente a exposição político-estética de seu amigo e lhe responde algo surpreendente. Ele acredita que as imagens devem continuar a ser feitas. A razão dos problemas de alienação não surgiria da semiose em si mesma. Como qualquer outra linguagem, o cinema possui condições de comunicar e expressar quaisquer conteúdos para quaisquer finalidades. A validação ética e moral do produto fílmico, ou de qualquer outra semiose, surge das escolhas feitas por seus usuários. Dessa forma, existe possibilidade de renovar, de recolocar a obra de arte, que foi contaminada pelo excesso de mercantilismo e de massificação ao qual foi exposta, em outros patamares. A chance de depuração do fenômeno artístico materializa-se quando a semiose fílmica, ou afins, for utilizada para a educação de valores humanistas, juntamente com a possibilidade da criação de jogos estruturais que valorizam a invenção, a fantasia, a criatividade que é capaz de rejuvenescer o olhar e as práticas artísticas e comunicacionais.


Este ponto de vista, de certa forma, coaduna-se com a estética de Álvaro de Campos. Aceita-se o burburinho da vida, a cultura corrente, os avanços e ganhos tecnológicos e científicos. Aceita-se o cinema como a maior tecnologia comunicacional e artística de todos os tempos. Registra-se a variabilidade de vida com a câmera que se mostra tão poderosa quanto o olho humano, mas que do olho humano ainda necessita para focalizar, alinhar, demarcar os conteúdos a serem impressos na película. Da opacidade do fenômeno fílmico, pode se criar mecanismos reflexivos capazes de explicitar as modalidades e finalidades de tal linguagem, como nos ensina Ismail Xavier (2005). Do discurso pronto e acabado, surge a possibilidade de evidenciar as estratégias discursivas utilizadas para a exposição de situações e de ideais demarcadores do nível de enunciação. Assim, o filme passaria além do contexto em que a diversão apresenta um fim em si mesma, levando o público a um campo de reflexão sobre o que assiste e sobre o que é assimilado e sentido através da experiência de intelecção e de fruição.


Esse campo de sensorialidade e de fruição aproxima o ponto de vista de Winter do ponto de vista de Álvaro de Campos. Há de sentir e experimentar todas as situações que a cultura é capaz de oferecer. Ao lado da fruição intensa, incrementa-se a condição da intelecção reflexiva e avaliativa que assegura o equilíbrio do gozo advindo da contemplação, do enlevo que a obra de arte ainda deve produzir.


Friedrich escuta o amigo humanista e resolve voltar ao projeto original de produção de um filme sobre Lisboa. Um filme com possibilidades de ainda ser feito e ser assistido, com um frescor instigante que os guiará a escolhas criativas, produtivas e humanistas quanto ao exercício artístico. Os dois saem a filmar por ruas, praças, edifícios, pessoas e outras situações lisboetas. O planejamento com roteiros e decupagem é deixado de lado para que se siga a dinâmica do olhar infantil que se encanta com as coisas como se elas não existissem antes ou se existiam, ainda podem ser recolocadas em outras formas de existências.


Aqui, sentimos que Wim Wenders nos propõe um novo tipo de cinema, inspirado em uma imbricação dos valores expostos pelos dois heterônimos pessoanos que são Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Um cinema capaz de proporcionar diversão, fruições sensoriais e afetivas, além de elementos que fomentem a discussão sobre o produto artístico que é recebido. De simples artefacto fabril, o filme passaria a condição de fenômeno no qual estão imbricadas possibilidade de re-presentar o universo em uma dialética entre aquilo que está dado e o que ainda pode ser feito.


O hipertexto fílmico explicita ainda a contribuição feita pelo hipotexto poemático. Sem os poemas de Fernando Pessoa, dificilmente haveria acordo entre a visão do diretor e a visão do engenheiro de som. Esse microscomo, que representa o macrocosmo do confronto entre arte genuína e arte massificada, vem à tona e é direcionado por discussões e conclusões advindas do campo literário. Este campo que, como nos diz Jeanne Marie-Clerc (1993), alimentou e possibilitou ao cinema transformar-se em uma arte de cunho sério e produtivo, apesar de suas veleidades em seguir gêneros de grande apelo popular. A continuação dessa relação transtextual, de ricas contribuições recíprocas, segue seu curso, oferecendo-nos filmes metalingüísticos, e afins, que não carregam no didatismo, mas que equilibram a diversão, o humor, o jogo a questões reflexivas e educativas, como é o caso de O céu de Lisboa.

Referências:
AUMONT, Jacques. Dicionário teórico e crítico de cinema. Trad. de Eloísa Araújo Ribeiro. Campinas: São Paulo, 2003.
BENJAMIN, Walter. Oeuvres III. Trad. do alemão por Maurice de Gandillac et al.
Paris: Gallimard, 2000.
CLERC, Jeanne-Marie. Littérature et Cinéma. Paris: Nathan, 1993.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: Literature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
PESSOA, Fernando. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1994.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: A opacidade e a transparência. 3. ed. revista e ampliada, São Paulo: Paz e Terra, 2005.
WENDERS, Wim. Sob o céu de Lisboa (Lisbon Story). Alemanha/Portugal, 100 minutos. Baseado em poesias de Fernando Pessoa, 1995.