segunda-feira, 28 de março de 2011

Guardando rebanhos e águas: a subjetividade ecocrítica na poesia de Fernando Pessoa e Manoel de Barros





ARTIGO PARA REVISTA FRONTEIRAZ
3° Simpósio Internacional de Literatura e Crítica Literária: Poesia Contemporânea - Travessias Poéticas Brasil & Portugal (PUC-SP /UAL)

Artigo selecionado entre 200 e tantos outros para número especial da Revista Fronteiraz - PUC - SP.



Guardando rebanhos e águas: a subjetividade ecocrítica na poesia de Fernando Pessoa e Manoel de Barros


Prof. Dr. Jorge Alves Santana - Letras/UFG



   RESUMO:
Conceitos da Ecocrítica são usados aqui em sua relação com o pensamento ecológico e a estética lírica para analisar os livros O guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro e O Guardador de águas, de Manoel de Barros.

Palavras-Chave: Fernando Pessoa – Manoel de Barros – Ecocrítica - subjetividade


ABSTRACT:
The Ecocriticism concepts are used here, in relation to the connections between ecological thought and the lyrical aesthetics, to analyze the works The Keeper of Sheep, by Fernando Pessoa / Alberto Caeiro and The Water Keeper, by, Manoel de Barros.

Key Words: Fernando Pessoa – Manoel de Barros – Ecocriticism - subjectivity


A poesia de O Guardador de rebanhos, do heterônimo pessoano Alberto Caeiro, representa um universo campesino/pastoral no qual a subjetividade lírica desdobra-se em movimentos de abstrações estéticas e filosóficas no meio da representação/constituição das coisas. Tanto subjetividade quanto natureza são cartografadas por anteparos culturais que minimizam as semelhanças e os vínculos espontâneos e estruturais entre o ser humano e a realidade ecológica na qual ele está inserido.
Já a poesia de O guardador de águas, do poeta brasileiro Manoel de Barros, representa subjetividades e natureza em uma disposição de devir coisal constante (Deleuze; Guattari: 1996) . O homem e a natureza são colocados em dinâmica animista, cuja hierarquia entre os seres é minimizada, ou ressignificada, o que possibilita a criação de um corpo sem órgãos inventivo e instigante no quesito de constituição e funcionalidade da representação do ser humano, da flora, da fauna e de elementos inorgânicos.
O nivelamento de importância coisal entre os seres, constante no poeta brasileiro, aponta para uma modalidade representacional que desterritorializa a importância fundante dos valores exclusivamente antropocêntricos e, consequentemente, aponta para uma movimentação político/cultural que reflete sobre o respeito e a dependência existencial entre os seres que formam a rede da natureza.
Essa ótica vai ao encontro de estudos contemporâneos da Ecocrítica, tanto na sua perspectiva de cultura inglesa, no caso de Cherryl Glotfelty (1996), Harold Fromm (1996) e Greg Garrard (2006), quanto na francesa, presente nos escritos de Félix Guattari (1989;1996). Essa disciplina reflete sobre as relações do pensamento ecológico com a produção artística, que, no caso de nossas reflexões, debruça-se sobre as duas construções em foco: O guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro e O guardador de águas, de Manoel de Barros.
            A Ecocrítica potencializa seus esforços e cria um arcabouço teórico-analítico quando, à maneira de Glotfgelty e Fromm (1989), elabora questões, das quais escolhemos as seguintes para guiar nosso trabalho: Que modalidades representacionais da natureza estão presentes na obra? Que funcionalidade a natureza exerce no texto? Soma-se a essas duas, uma outra que considero importante para minha pesquisa no campo dos estudos literários, aquela que trata das formações da subjetividade. A questão seria: Como a Ecocrítica redimensiona as concepções de sujeito?
Dissemos que Pessoa/Caeiro intenta mergulhar na natureza em que se insere. A ação do mergulho supõe minimamente um corpo que está fora de um ambiente, aquático ou figurado, e passará a fazer parte do ambiente/alvo do mergulho. Água ou natureza forma um ambiente que não faria parte da constituição essencial do sujeito do mergulho, pois ele habita um lugar fora do lugar de mergulho. Assim, podemos perceber que o eu poemático coloca-se como um elemento estranho à dimensão que, por natureza, é seu lugar de origem e de constituição presente.
Lembremo-nos de um dos poemas que representam o leitmotiv desse livro:


I - Eu Nunca Guardei Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos, 
Mas é como se os guardasse. 
Minha alma é como um pastor, 
Conhece o vento e o sol 
E anda pela mão das Estações  
A seguir e a olhar. 
Toda a paz da Natureza sem gente  
Vem sentar-se a meu lado. 
Mas eu fico triste como um pôr de sol  
Para a nossa imaginação, 
Quando esfria no fundo da planície  
E se sente a noite entrada 
Como uma borboleta pela janela. 
[...]
Pensar incomoda como andar à chuva 
Quando o vento cresce e parece que chove mais. 

Não tenho ambições nem desejos  
Ser poeta não é uma ambição minha  
É a minha maneira de estar sozinho.  [...]

Quando me sento a escrever versos 
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, 
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, 
Sinto um cajado nas mãos 
E vejo um recorte de mim 
No cimo dum outeiro, 
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias, 
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho, 
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz 
E quer fingir que compreende. 

Saúdo todos os que me lerem, 
Tirando-lhes o chapéu largo 
Quando me vêem à minha porta 
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. 
Saúdo-os e desejo-lhes sol, 
E chuva, quando a chuva é precisa, 
E que as suas casas tenham 
Ao pé duma janela aberta 
Uma cadeira predileta 
Onde se sentem, lendo os meus versos. 
E ao lerem os meus versos pensem 
Que sou qualquer cousa natural — 
Por exemplo, a árvore antiga 
À sombra da qual quando crianças 
Se sentavam com um baque, cansados de brincar, 
E limpavam o suor da testa quente 
Com a manga do bibe riscado.

(Pessoa: 1995, p. 203-204)


            O poema imediatamente inquieta o interator (leitor ativo) quando se denega a condição funcional do sujeito. Em desacordo com o título do livro, vemos a funcionalidade subjetiva abandonar o que seria o reles animal doméstico/fonte de alimento (a ovelha) para aferrar-se a idéia de que tal rebanho é feito por seus pensamentos. Sua alma seria o pastor de tais pensamentos que estariam imbricados por sensações e sentimentos. Mais pensamentos do que sensações e sentimentos, pois o poema, em franco processo alegórico, procura explicar a metodologia de composição e de postura da vida sensacionalista que o autor tenta concretizar nessa e em outras obras.
Vários elementos empíricos da natureza são aí elencados e convencionalmente pertencem ao repertório de temas oficiais da natureza presentes na poesia pastoral européia, tais quais: o rebanho, o vento, o sol, as estações, a planície, a noite entrada, a borboleta, as flores, o ruído de chocalho, a curva na estrada, o andar à chuva, o cordeirinho, a erva, a nuvem que passa, o cajado nas mãos, o cimo de um outeiro, o pôr do sol, a árvore antiga. Um conjunto de seres que representam o reino animal, vegetal e mineral e potencialmente possuem uma riqueza existencial poderosa para reterritorializar a subjetividade que muito provavelmente anda à procura de suas raízes e da paz que o estrato urbano não lhe proporciona.
Caeiro, no entanto, não parece estar a nivelar sua existência com a dos demais seres de sua rede ecológica. Tais seres não existem pelo seu valor intrínseco (o que vale por/em si mesmo) ou relacional (o que vale para/em si mesmo e para os outros), já que a tônica representacional encaminha-se para um exercício intelectual de comprovação de uma tese. A tese em questão é a de que a subjetividade faz-se, e é percebida, de modo fenomenológico. O sujeito é aquilo que sua imanência é: um conjunto de sensações/percepções que culmina, paradoxalmente, em uma reflexão racionalista que é expressa nos versos: “Pensar incomoda como andar à chuva /Quando o vento cresce e parece que chove mais.” De fato, a subjetividade do eu poemático enriquece-se no seu campo existencial e accional quando ele se abre para o locus ecológico que se lhe descortina, como acompanhamos no último poema desse livro:



XLIX - Meto-me para Dentro
     Meto-me para dentro, e fecho a janela.
     Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
     E a minha voz contente dá as boas noites.
     Oxalá a minha vida seja sempre isto:
     O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
     Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
     A tarde suave e os ranchos que passam
     Fitados com interesse da janela,
     O último olhar amigo dado ao sossego das      

árvores,
     E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
     Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
     Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
     E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

(Pessoa: 2005, p. 227-228)


Depois da constatação dos ganhos obtidos pela imersão na natureza, o sujeito entra para sua casa, recolhe-se ao seu quarto e agradece ao dia cheio de sol, ou suave de chuva. Olha agradecido e fraternal para o sossego das árvores. Em seguida, recolhe-se ao seu próprio íntimo; uma intimidade que ainda funciona sob a dinâmica da interioridade e da exterioridade, ou seja, de um pensamento que é dominado pela ótica da exclusão das substâncias e das formas na formação de suas singularidades.  
O sujeito do poema sente a vida correr por si, como um rio por seu leito; porém, existe um “lá fora” de si mesmo que é “um grande silêncio como um deus que dorme”. Assim, não houve união ou hibridização entre essa subjetividade com o deus (grafado com letra minúscula) que representa a natureza em repouso. Parece que o contexto trata mais de uma aprendizagem dos sentidos e de uma razão mais maleável com o cotidiano do que de um processo de identificação inclusiva entre as partes. Cada um, poeta e natureza, repousa em sua dimensão própria, continuam a ser o que eram antes, mesmo que o humano tenha aprendido grandes lições de vida com os elementos do reino animal, vegetal e mineral: a natureza continua inclusiva (valendo por si mesma) com seus mistérios que não são mistérios, já que ela é apenas foco de sensações, e o poeta (recolhido em seu quarto civilizado e não em uma cama de relva debaixo de alguma árvore antiga) em sua egóica calma apreendida, mas não integrada, à  natureza.
O guardador de rebanhos europeu receberá outras lições, que não apenas aquelas da natureza, para sua finalidade de exposição filosófica, de seu locus ribatejano no desdobramento da recepção de sua obra. Nessa seara de recepções e atualizações, merece destaque a hipotextualidade (Genette: 1982) criada por Manoel de Barros em seu O Guardador de águas, de 1989, sintomaticamente escrito após o livro de poemas Livro de Pré-coisas, de 1985. Digo sintomaticamente, pois no livro de poemas de 1985, já tínhamos uma explosão de representação ecológica, sob um intenso exercício literário como não tínhamos visto desde as paragens veredeiras de Guimarães Rosa.
Acompanhamos em O guardador de águas uma junção de ecologia profunda (Naess: 1994) com experimentalismos lingüístico/poético de cunho onírico, fantasístico e delirante em que a subjetividade territorializa-se/desterritorializa-se/reterritorializa-se em um locus de natureza ainda civilizada, mas já eivada de elementos alógicos e prelógicos que constituem dimensão complexa e heterogênea de possibilidades existenciais.
Mais do que um quadro de elementos regionais, o exótico ou oficiais (na versão governamental), o Pantanal de Manoel de Barros é representado em uma espécie de suboficialidade. O humano é redimensionado em uma proporção semelhante a seres que normalmente nossos olhos pragmáticos não enxergam. Os reinos animal, vegetal e mineral são mostrados em suas espécies pequenas, tanto em forma quanto em valor cultural. Riachos, árvores, brisa, latas, pardais, conchas, novilúdios, urubus, limo, caranguejos, formigas, passarinhos, mosquitos, cardos, pedra de arroio, seixal, jias, brejos, o rio, escaravelhos, lagartas, camaleões, aranha, jaburu, escorpiões, besouros, entre outros, formam um quadro em que o homem apequena-se, nivelando-se a seres menores que possuem uma vida repleta de portentosos fluxos accionais. Vejamos alguns fragmentos do poema que dá título ao livro:


O Guardador de Águas

I
O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase
coberto de limos -
Entram coaxos por ele dentro.
Crescem jacintos sobre palavras.
(O rio funciona atrás de um jacinto.)
Correm águas agradecidas



sobre latas...
O som do novilúnio sobre as latas será plano.
E o cheiro azul do escaravelho, tátil.
De pulo em pulo um ente abeira as pedras.
Tem um cago de ave no chapéu.
Seria um idiota de estrada?
Urubus se ajoelham pra



ele.
Luar tem gula de seus trapos.

II
Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rás o
exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto - e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada 2 pernas de ocaso
para dentro de um oco... E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde -
Como a foz de um rio - Bernardo se inventa...
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem.

V
Eles enverdam jia nas auroras.
São viventes de ermo. Sujeitos
Que magnificam moscas - e que oram
Devante uma procissão de formigas...
São vezeiros de brenhas e gravanhas.
São donos de nadifúndios.
(Nadifúndio é lugar em que nadas
Lugar em que osso de ovo
E em que latas com vermes emprenhados na boca.
Porém.
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor
de ninguém.
Nem ao Néant de Sartre.
E nem mesmo ao que dizem os dicionários:
coisa que não existe.
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com

letra
minúscula.)
Se trata de um trastal.
Aqui pardais descascam larvas.
Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.
E uma concha com olho de osso que chora.
Aqui, o luar desova...
Insetos umedecem couros
E sapos batem palmas compridas...
Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.

XX
[...]
De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem
o rumo das grotas.
Todas estas informações têm uma soberba desimportância
científica - como andar de costas.
(Barros: 1989)


          
Uma vasta e rica exposição de seres pequenos, do ponto de vista sócio-político-cultural, é colocada no palco em que se apresenta um projeto de subjetividade que é o de Bernardo da Mata, personagem também presente em o Livro de pré-coisas e em outros poemas do autor. Bernardo não é o protagonista à moda clássica desse poema-narrativa-esboço de vida, pois sua cartografia não se singulariza sob móveis antropocêntricos excludentes. Como um outsider, não se curva completamente aos agenciamentos institucionais de nossa civilização. Anda pelos ecossistemas do bioma pantaneiro como um ser igual aos demais. Sua relação com essa realidade radicaliza-se quando percebemos sua constituição egóica amalgamar-se com cada espécie que corporifica o poema.
           O texto é aberto com a inusitada e bela imagem da aparelhagem de ser: “O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase coberto de limos.” E fecha-se com a profissão de fé que aponta a inutilidade/utilidade de exercitar-se a vida em facetas não produtivas do ponto de vista econômico predominante: “Todas estas informações têm uma soberba desimportância científica - como andar de costas.”
           No poema, quando usamos as reflexões da ecologia profunda, proposta por Arne Naess (1989), os seres não-humanos são percebidos em suas singularidades. Não vivem para servir à humanidade, como prenuncia a mitologia do Gênesis e de várias outras religiões. São, pois, coisas improdutivas sob a perspectiva da cultura de produção e consumo de bens que só são positivados quando entram no circuito de produção de trabalho/lucros alienados e alienantes para o organismo social.
           O universo poético/pragmático proposto pelo poema parece nos indicar que existem outras possibilidades accionais para o sujeito. Bernardo não é o rei dos animais, como nossa cultural judaico-cristã poderia lhe cobrar. Bernardo sequer é o administrador da natureza, como algumas linhas do pensamento ecológico postulam. Bernardo não é o funcionário do governo que obrigatoriamente monta uma aparelhagem de conhecimento, preservação e vigilância de ecossistemas em via de extinção. Bernardo não é o santo convencional da cultura ocidental, aquele sujeito que abandona a cidade e vai para o campo, ou afim, para encontrar-se com sua divindade e fortalecer-se para retornar à cidade e reeducar os corações endurecidos de seus conterrâneos. A cartografia de Bernardo da Mata vai além dos estratos cotidianos e amplamente manipulados pelos agenciamentos de poder hegemônico. Bernardo parece que se transmuta nos seres com os quais se relaciona. Sua constituição hibridiza-se e zoomorfiza-o na relação com os seres do pantanal/mundo.
           Mais do que contexto de zoomorfização, porém, percebemos que o processo que conforma Bernardo aumenta sua ação quando a subjetividade deste ser coisifica-se. O processo de coisificação é mais radical que o processo de assemelhar-se aos animais. Esse processo implica a similaridade com seres vegetais e animais que, via de regra, encontrar-se-iam em nível de importância bem abaixo daquele valor que o humano julga possuir. Sobre o ser coisal, vale observemos o fragmento VI do poema Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada, deste mesmo livro:


VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
(Barros: 1989)

           A personagem poética, criada por Manoel de Barros, é um ser-coisa, de abrangência compósita tão ampla que chega a abarcar variados ecossistemas pantaneiros e além. Sua existência é transfigurada pelas subexistências que lhe acoram as possibilidades quase infinitas. E nessa linha de produtividade subjetiva constante, já que o ser só o é de modo provisório, pois se encontra em constante devir (Deleuze; Guattari: 1996), é que também encontramos Bernardo, um ser-coisa inserido naquela preocupação fenomenológica, diferentemente da postura de Pessoa/Caeiro, ao vivenciar o seu Hic et Nunc         
O valor da vida presente, no entanto, não é representada por uma liguagem racionalizante/racionalizada. A “agramacticalidade quase insana” instala-se como para lembrar o humano sobre suas antigas origens e que o vínculo com a natureza é essencial para o homem compreender-se a si mesmo, aos outros e o universo no qual é colocado.  O dizer, para o eu poemático, é cheio de vareios/variabilidade e, sendo assim, a linguagem precisa ser deflorada, inaugurada e empoemada.
           Temos aqui dois projetos estéticos que usam, diretamente ou indiretamente, temas do pensamento ecológico que se delineou e consolidou-se no decorrer do Século XX. O tratamento europeu diferencia-se do tratamento brasileiro, sem contudo estarem em uma dinâmica de exclusão. Ambos aproximam-se do tema e enriquecem-no ao seu modo. Se no primeiro, a região pastoral ribatejana serve de motivo para uma potente discussão artístico-filosófica, no segundo vemos uma lição de existencialidade rizomática radical, na qual possíveis cartografias humanas são dimensionadas na riqueza e heterogeneidade dos corpos sem órgãos.
            A Ecocrítica pode então funcionar como repertório reflexivo/conceitual com o qual acompanhamos a produção artística aproximar-se de questões densas e importantes para nossa contemporaneidade. Dentre textos ficcionais e não-ficcionais tratados pela ótica ecocrítica, colocamos em relevo aqui o texto poético com seu enorme potencial de representar novos horizontes existenciais tanto no âmbito dos procedimentos lingüísticos que oxigena a língua quanto no âmbito na possibilidade de deslocamento de cartografias subjetivas conservadoras para cartografias subjetivas proteiformes, móveis e heterogêneas. Ou seja, trabalhamos com um salutar enfoque analítico-teórico que serve de móvel tanto para a evolução e consolidação do artístico quanto para recolocações de procedimentos básicos para o convívio humano/animal/vegetal/mineral/coisal pragmático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROS, Manoel de. O guardador de águas.  São Paulo: Art Editora, 1989.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 2001. Traduzido para o português pela Ed. 34, em 1996. Vols 1 e 3.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: literature au second degré. Paris: Seuil, 1982.
GARRARD, Greg. Ecocrítica. Trad. de Vera Ribeiro. Brasília: UNB, 2006.
GLOTFELTY, Cheryll & FROMM, Harold; (eds.). The ecocristicism reader: landmarks in literary ecology. Athens / London. The Univ. of Georgia Press, 1996.
GUATTARI, Félix. Les trois écologies. Paris, Galilée, 1989.
NAESS, Arne. Ecosofia. Trad. de Elena Recchia. Como: RED, 1994.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995.