terça-feira, 7 de abril de 2009

As tempestades de Shakespeare e de Peter Greenaway: construção e descontrução intersemiótica




Somos sujeitos de uma época que nos apresenta artefatos artísticos complexos e proteiformes. Tais produções são configuradas por linguagens tradicionais, como a escrita, a fala, as imagens, e são constantemente dimensionadas para um campo aberto a outras linguagens e veículos midiáticos presentes, porém colocados em nível sócio-cultural tido como inferior. No entanto, apesar de existir secularmente uma hierarquia entre as linguagens e os meios, a produção textual contemporânea está imersa em uma miríade de intersemioses criativas que encantam os receptores e, ao mesmo tempo, demandam suportes teórico-críticos e interpretativos multidisciplinares.

Do conceito de texto tradicional, a contemporaneidade caminha para um deslocamento capaz de abranger a heterogeneidade constitutiva e funcional das mensagens artísticas e não-artísticas produzidas. Texto, pois, transforma-se em um fenômeno lingüístico de estrutura e extensão heterogêneas e inclusivas em relação a elementos outrora tidos como exteriores.

Neste quadro, no qual o texto escrito enriquece-se com elementos de outras semioses e de mídias ou hipermídias com grande poder tecno-interativo junto a um público que se massifica rapidamente (GOSCIOLA, 2003, p. 37), verticalizamos nosso objeto de estudo. O mesmo é produto da predominante interpenetração de semiose escrita, a peça de William Shakespeare A tempestade (publicada em 1623), com o texto fílmico do diretor inglês multimidiático Peter Greenaway, A última tempestade ( Prospero’s Books), produção de 1991.

O texto clássico de Shakespeare é a última peça do autor e, naturalmente, condensa toda a tecnologia de escrita apreendida de forma individual e de migração epocal. Ou seja, a época elisabetana tem os seus valores refletidos nas ações do Duque e Mago Próspero. Além disso, tal texto é tido como um dos ápices daquilo que a literatura conseguiu fazer no Ocidente, tornando-se, ao lado dos clássicos gregos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, marcos da capacidade criativa no campo da escrita literária.

Essa narrativa shakespeareana trata do projeto de vingança de Próspero, protagonista que era o Duque de Milão, um dos ducados mais prósperos de sua época. O Duque, no entanto, começa a afastar-se das questões políticas para mergulhar nos estudos de todos os livros disponíveis em sua época, em particular livros de magia. Nesse contexto, seu irmão Antônio junta-se a Sebastião, irmão do Rei de Nápoles, e rouba-lhe o Ducado, desterrando-o, com sua pequena filha Miranda, para uma ilha desconhecida.

Ao partir para a ilha do desterro, Próspero recebe a ajuda de Gonzalo, probo e velho conselheiro do Rei de Nápoles. A ajuda materializa-se em livros, comidas e outros bens úteis, para o desterrado manter-se vivo, ao lado de sua filha. Desses bens, o Duque traído valorizará sobremaneira os objetos de seu maior afeto que são os livros.

Quando Próspero chega à ilha, vence influência da velha bruxa, Sycorax, que dominava o lugar e adota o seu filho, mistura de monstro e homem, Caliban. Grande parte do seu tempo é devotada aos estudos de magia para o fortalecimento de seu poder sobre os espíritos e elementos da ilha, e para a educação de Miranda e de Caliban. Porém, o objetivo de ensinar Caliban a ser humano não tem sucesso e o mago o transforma em reles e rebelde serviçal.

O grande objetivo de Próspero é vingar-se daqueles que o traíram. E a peça inicia-se justamente no momento em que ele coloca seu plano de vingança em curso. Com a ajuda do espírito do bem Ariel, fomenta uma grande tempestade sobre um navio, no qual todos os envolvidos no caso da traição (Antônio, Sebastião, Gonzalo, Alonso, entre outros) encontravam-se. Os náufragos dão na ilha e passam a ser encantados, até Próspero revelar as razões da situação e, em vez de puni-los, acaba por perdoá-los. Sim, o homem traído, após conversar longamente com Ariel sobre as falibilidades humanas e as potencialidades educativas do amor para com os homens frágeis em seu caráter, resolve perdoar no lugar de punir. Dessa forma, tudo termina bem quando se está bem.

A narrativa possui outras células accionais, que são ancilares; no entanto, o tema central ficcionaliza sentimentos humanos, tais como amor, ódio e perdão, que alicerçam a realidade julgada como verdadeira pelos sujeitos que nela estão inseridos. No caso em questão, a narrativa é permeada de situações oníricas, fantásticas e, em uma espécie de vanguarda de séculos antes, surrealistas. Estes elementos dão ao conjunto a moldura daquelas narrativas de caráter alegórico; ou seja, escreve-se um sentido indicando outro sentido subjacente ao primeiro. Assim, a idéia da tempestade diz respeito não à inclemência climática, mas às perturbações anímicas do ser humano.

Como narrativa literária, o autor veicula, com elegância e firmeza, uma mensagem que se firma como imorredoura, pois atravessa os séculos e ainda hoje fomenta reflexões sobre tópicos como: a realidade e o sonho; a maleabilidade dos sentimentos; e os contatos secretos do homem com as misteriosas forças da natureza. Esses elementos ocasionam um ganho de causa para a escrita que atingiu seu ápice e continua a fazer escola nos tempos contemporâneos.

Do quadro dado, acompanhamos a evolução incessante das estruturas midiáticas e podemos perceber que os temas universais são enriquecidos quando passam de um meio de transmissão para outros. A mudança de semiose parece refrigerar o tema e ampliar o seu leque de demanda. Assim, no final do Séc. XX, quando Peter Greenaway roteiriza e filma o seu Prospero’s Books, passamos a ter nas mãos um produto tecno-estético farto de questões para serem discutidas sobre o encontro e a intersecção de linguagens diferentes, bem como a relação entre perspectivas representacionais de épocas diferentes.

De início, o campo de pesquisa inibe-se com a fartura do material resultante do encontro ente as artes, literatura e cinema, e do encontro intersemiótico, signo lingüístico grafemático e signo lingüístico imagético, para mencionar apenas os dois tipos de semas de base que, na realidade, coabitam com variados outros semas o palimpseto textual. Por outro lado, suportes teóricos vão sendo conformados rapidamente para que se dê conta de tão engenhosas e cativantes produções que instigam, apesar do natural desnorteamento, o público contemporâneo.

Preconceitos quanto a tais imbricações de linguagem são abundantes, como nos alertam a pesquisadora francesa Jeanne-Marie Clerc (1985). Para ela, o campo de pesquisa que usualmente restringe-se a academias, elege para pesquisa objetos que tenham certa pureza de constituintes e funcionalidade pragmaticamente compreendida. Dessa forma, no caso específico de estudos sobre o encontro entre literatura e cinema, deve-se precaver contra dogmas e preconceitos tais como: quanto ao texto escrito – seu valor cultural de produto elitizado; a singularidade da composição individual; o valor da abstração educativa que o produto fomenta no receptor; a aura estética e ética que emana do produto escrito; entre outros; quanto ao texto fílmico – sua natureza de produção de massa e conseqüentemente seu alto poder de alienação; o descontrole do artista sobre o produto final; a qualidade dos valores éticos, determinada pelo aspecto quantitativo de recepção; e o nivelamento por baixo do poder de abstração causado pelas imagens e outras linguagens presentes no objeto fílmico.

Apesar de tantas contrariedades, é inegável percebermos que uniões do tipo literatura e cinema geram uma tecnologia completiva e produtiva quanto às linguagens de base. Quanto a sua funcionalidade, vale lembrarmo-nos do veredicto de Platão à escrita, quando ele a chama de Phármaco: algo semelhante ao remédio que não pode ser valorado em si mesmo, mas, sim, pelo uso que dele se faz; ou seja, nenhuma semiose é, em si mesma, positiva ou negativa, e tais judicações só deveriam ser feitas ao produto que já encerra determinada mensagem.

Clerc (1989), que, aqui, acompanhamos mais de perto, alerta-nos para a necessidade natural dos encontros tecnológicos e nos chama a atenção para o conceito de influência que alicerça essas relações. A autora nos lembra de que o cinema, em seus primórdios, foi auxiliado pelo texto escrito já consolidado. Os irmãos Lumiére usavam obras de Júlio Verne e de contistas clássicos como Charles Perrault, Hans Christian Andersen, os irmãos Grimm, entre outros, para conquistar a curiosidade do grande público e disseminar mais rapidamente sua produção. No entanto, esse sentido de influência criaria irremediavelmente a condição de subserviência de uma linguagem para com a outra. Quanto a isso, Clerc nos alerta que

[le] concept d’influence cinématographique, depuis les années 60, est en passe de tomber em désuétude.Les nouvelles conditions de création et de réception des objets culturels, au sein de cette civilisations marquée par l’empreinte des mass media et des loisirs, aboutissent à transformer considérablement les rapports entre l’auteur et son public, entre l’oeuvre et le monde. L’émergence de nouveaux fonctionnements imaginaires, en étroite relation avec l’illusion réaliste sécrétée par les technologies iconiques, aboutit à modifier la nature et les fonctions de la visualité, dans un univers où réalité et fiction s’échangent et s’interpénètrent constamment. (1989, p. 273-274)

Os novos funcionamentos de tecnologias de produção de sentidos estão jogados no circuito comunicacional de massa e seu uso flexibiliza o conceito de influência. Se antes, como na ótica de Walter Benjamin (2000), a qualidade de formação e de transmissão de mensagens estava sob o domínio predominante da narrativa oral contada por quem a vivenciou ou a escutou de fonte segura, na contemporaneidade, sabe-se que a linguagem de qualquer meio tem o mesmo poder de veicular e persuadir o público. Podemos repetir, então, a máxima de que o meio é polivalente em sua estruturalidade e funcionalidade.

Ainda com Clerc (1989), vejamos sua reflexão que baliza pragmaticamente nossos estudos comparativos:

[...] Ces interférences retentissent inévitablement sur la conception de l’oeuvre où s’abolisent les distinctions e les catégories. De même que la réalité où baignent les individus est imprégnée de fantasmes, de même les modes d’expression cinématographique et romanesque se rejoignent dans une collaborations où l’authenticité documentaire de la photographie cautionne l’irréalité de l’image mentale. Mais, plus que jamais, ces oeuvres mixtes posent question au langage, dans l’utilisation logique et rationnelle qui fondait jusqu’alors des siècles de culture occidentale. C’est autour de cette problématique du langage que se cristalliseront désormais les rapports entre less deux arts. ( p. 274)

No lugar de valorar a contribuição de uma linguagem para outra como influência original e, portanto, superior, a autora nos relembra da validade operacional das duas linguagens, independentes de variáveis culturais e de época. Toda linguagem possuiria em sua base o poder de representar, no caso, artisticamente a realidade. Dessa forma, o que vale é acompanhar o procedimento estrutural na articulação sêmica e intersemiótica.

Prospero’s Books, de Greenaway, entra aqui como um exemplo dessa coabitação harmoniosa. O diretor hipermidiático aproxima-se do texto clássico de Shakespeare com toda a reverência necessária, porém reveste-o dos avanços tecnológicos do hipertexto contemporâneo. Acompanhamos, no filme, o texto clássico em sua inteireza grafemática, já que as letras manuscritas estão na tela, ou em nível de sobreposição a alguma imagem, ou em nível de subposição. A linearidade do código narrativo é mantida com, inclusive, direito ao começo in media res, tão caro à necessidade de contensão do texto trágico. Acompanhamos e compreendemos bem a estória de Próspero disposta na película.

A adaptação estaria no campo da normalidade se o diretor, como já mencionamos, colocasse-se como um receptor apassivado de um poderoso texto. O que não é o caso, pois aos tradicionais mecanismos da literatura clássica, Greenaway agrega elementos reconstrutores e ressignificativos. Lesa majestade para uns, produção engenhosa e atual para tantos outros que são agraciados por uma narrativa multimidiática que transforma o produto fílmico em deleite para todos os sentidos físicos e em gozo para a inteligência do público educado, ou a se educar.
Se a narrativa clássica estava montada no eixo da sucessão de fatos na modalidade linearizada, o filme faz farto uso do que Sérguei M. Eisenstein (1969), em seu O princípio cinematográfico e o ideograma, chamou de montagem vertical, ou montagem em profundidade, ou, ainda, montagem polifônica (em concepção mais moderna). O diretor e teórico sobre o cinema, em consonância com os princípios teóricos da literatura de Roman Jakobson, atenta para o fato básico de a narrativa fílmica ser dada pela montagem, processo pelo qual dois campos semânticos justapostos se imbricam e criam uma terceira dimensão de sentido, situação esta semelhante ao da metáfora e da metonímia, figuras da retórica literária.

Esse procedimento acontece no nível microscópico da construção do plano e da seqüência, conceitos vistos aqui na perspectiva de Jacques Aumont (2001). Este procedimento seria o motor propulsor da narrativa, como Eisenstein comenta:

Então, montagem é conflito. Como a base de toda arte é conflito (uma transformação imagista do princípio dialético). O plano surge como a célula da montagem e, daí, deve ser também considerado através do ponto de vista do conflito. O conflito dentro do plano é a montagem em potencial, no desenvolver de sua intensidade, fragmentando a gaiola quadrilátera do mesmo plano e fazendo eclodir seu conflito através de impulsos da montagem entre as partes da montagem. (1969, p. 108)


Greenaway segue de perto essa montagem chamada de montagem intelectual que, por sua vez, exige a presença de um espectador intelectual que compreende o jogo e a produção de sentido que daí decorre. Caso natural, quando se trata de narrativas dialéticas que partem de uma situação conflituosa para o estabelecimento de uma nova situação, na qual, de modo exemplar, os problemas já tenham sido solucionados ou mais controlados, permitindo a vida seguir seu curso sem sérios atropelos.

No filme em questão, porém, a montagem em profundidade não fica apenas no campo do enunciado. Por exemplo, na seqüência inicial, in medias in res, acompanhamos Próspero ordenar que Ariel faça a tempestade, cause o naufrágio e traga os inimigos à ilha. Nesse núcleo accional, vemos simultaneamente Próspero em sua piscina, articulando e executando o plano de vingança; vemos a embarcação ser surrada pela tempestade; seguimos ainda os espíritos da ilha em ação; os náufragos sendo resgatados; e, com valor simbólico de peso considerável, podemos ler o texto manuscritado da peça de Shakespeare sobreposto às várias interfaces que se amalgamam na película.

Tal procedimento tecnológico, produzido com o auxílio de variadas gamas de filtros, softwares gráficos e ambientes computacionais multifuncionais, como nos lembram Yvana Fechine (2003), criam algo mais do que o sentido natural ocasionado pela montagem em profundidade, proposto por Eisenstein. Planos são produzidos, nos quais vemos não apenas um signo de linguagem específica em interação com signos da mesma linguagem. Tem-se, aí, a interação de enunciados completos veiculados por meios diferentes.

Como se colocou acima, na longa primeira seqüência, o diretor já nos fala ao que veio, pois imagem, escrita, cores, coreografia, escultura, pintura, entre outros, estão juntos para criar uma espécie de roteirização hipermidiática, conceito explicado por Gosciola (2003). O receptor intelectual, proposto por Eisenstein, tem acesso ao compósito artístico em toda a sua simultaneidade e, se quiser, pode entrar no conjunto por qualquer dos vieses semióticos possíveis. E as possibilidades de escolha de percursos do roteiro são grandes, já que a criatividade da aparelhagem hipermidiática oferece veículos ágeis e de acessibilidade convidativa ao produtor e ao consumidor.

O produto artístico de Greenaway é, pois, um encontro criativo e saudável com o produto artístico de Shakespeare. O terreno antigo é invadido, reproduzido, mas com o cuidado, quase que romântico, de se preservar sua positividade, no que diz respeito à valiosa mensagem humanista que ele transmite através dos séculos. Prova disso é a seqüência posterior à confirmação do noivado entre Fernando e Miranda, na qual temos o que seria uma montagem pura, nos dizeres de Eisenstein (1969). Nesta situação, temos a simplicidade do Protagonista que sai da multiplicidade intersemiótica a sua volta, a cortina desce as suas costas, e ele declama o que seria o sentido central da narrativa, tanto escrita quanto fílmica:


Próspero: Estais a olhar, meu filho, de uma maneira estranha; pareceis aterrados; alegrai-vos senhor. Os nossos divertimentos estão concluídos. Estes nossos atores, como vos disse, ora, assim como a ilusória realidade de tal visão se desvaneceu, hão de do mesmo modo esvair-se as torres que se elevam até às nuvens, os palácios soberbos, os templos majestosos e até o próprio globo com quanto nele existe. Nós somos feitos do mesmo estofo dos sonhos, e a nossa curta vida está encerrada entre dois sonos. Senhor, estou um pouco triste; perdoai à minha fraqueza; o meu cansado cérebro está perturbado; não vos inquieteis com esta minha enfermidade; se quereis, entrai para a minha gruta e descansai: eu darei uma volta ou duas para acalmar o meu perturbado espírito. (1942, p. 477, o grifo é nosso)
A montagem pura, conceituada por Eisenstein, é uma situação singular nesse contexto de interpenetração semiótica. Ela não diminui o potencial do arsenal tecnológico do texto intersemiótico quando ressalta uma mensagem que poderia estar em qualquer outro suporte. O texto clássico e o hipertexto contemporâneo criam, pois, o lugar que representa as possibilidades deste código de base, que é a narrativa.

Com estas reflexões breves, pensamos contribuir para um posicionamento mais flexível do pesquisador frente a várias mídias que existem em fluxo de purezas e imbricações nos constantes processos comunicacionais nos quais estamos imersos. A fusão da imagem com a palavra, e com tantos outros signos, segue seu curso, sem que sejamos obrigados a julgar tal processo sob ótica moralista ou ética quanto à linguagem usada e, sim, a priori, que nos posicionemos perante a estruturalidade e a funcionalidade de um meio que, ao contrário da pretensa substancialização, concentra-se para se tornar diáfano no instante seguinte.

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