Circuitos comunicacionais (JAKOBSON:1971) estabelecem condições de comunicação e expressão de referenciais do universo ego-sócio-cultural por subjetividades emissoras/receptoras. Se a formalização rigorosa de esquemas comunicacionais normalmente não atentam para a subjetividade personalizadasdos usuários inseridos no processo, o pesquisador deve fazer o resgate do elemento humano que ainda é a razão de ser da existência desses sistemas. Nesse quadro, acompanharemos alguns aspectos da estruturalidade e da funcionalidade de um desses dispositivos comunicacionais, de esfera cibernética, que é a rede social do orkut.
Tal rede de comunicação social pode consolidar cartografias subjetivas em franco processo de homogeneização e alienação, quando oferece roteiros rígidos de ação do usuário. No entanto, dinâmicas de flexibilização e de deslocamentos processuais e existenciais criam estratégias que asseguram a produção e a manutenção de cartografias subjetivas criativas, produtivas e conhecedoras do espaço gerador dessas representações.
O DISPOSITIVO DA REDE SOCIAL
Charles Baudelaire encanta-nos, entre tantos sentidos e nuances de sua obra poética, quando nos apresenta sua peculiar estratégia de olhar a realidade a sua volta sob a dinâmica da flânerie. Seu olhar flana pela Paris já industrializada do século dezenove. Sob cheiros e fumaças das chaminés; ao largo das ruas tomadas por comércios e consumidores sedentos das últimas novidades fabris e tecnológicas; imerso na massa anônima de trabalhadores; sob os resquícios da aristocracia européia; e influenciado por segmentos vigorosos de burgueses endinheirados e sedentos de consumir bens materiais e imateriais, Baudelaire fala-nos sobre o exercício existencial de olhar o mundo a sua volta em regime de desligamento lúdico, em um primeiro momento, e esclarecido, em momento posterior.
Walter Benjamin (2000), pensando a cultura da modernidade, resgata-nos a modalidade de olhar baudelaireano que procura descobrir o que seriam as verdadeiras razões existenciais do ser humano em franca época de territorializações tecnológicas, com todas suas decorrências de desumanização. Esse contexto, de consolidação fabril e tecnológica, coloca as subjetividades em regime de estupor, de incompreensão, além de investi-las da condição de instância alienada de produção e de consumo em relação ao que acontece em seus foros íntimos, com os demais seres e com o aqui e agora em que irremediavelmente estão inseridas.
A Paris de Baudelaire e a Europa de Benjamin não tinham ainda o mundo cibernético que conhecemos hoje. Computadores e suas interfaces variadas existiam apenas em embriões de projetos teóricos. No entanto, já existiam as redes sociais que juntavam pessoas em pólos de interesses afins.
Contemporaneamente, estamos em densa era da vida humana estabelecida na e pela realidade cibernética. Nosso cotidiano virtualizou-se de modo factual, corroborando a mais arrojada ficção científica sobre o tema. O corpo humano ganhou novos membros, agora cibernéticos, que à moda dos apêndices, tornaram-se essenciais a uma vasta gama de atividades. Usamos editores de textos, lemos jornais e revistas, acessamos rádio e televisão, acompanhamos blogs, fotoblogs e afins, programamos nossa vida de acordo com variados softwares; enfim, realmente nossa vida está impregnada e, mesmo, está sendo cartografada pelo universo cibernético.
De dispositivo tecnológico de difícil acesso, o computador tornou-se instrumento de registro, acúmulo e distribuição de dados das mais heterogêneas naturezas, meio de criatividade para artistas e congêneres, e, de modo instigante, meio de comunicação e subjetivação pessoal.
Interessa-nos de perto esse tema da comunicação e subjetivação pessoal. Entre os variados programas para tais fins, escolhemos a rede social do orkut para refletirmos sobre suas estratégias midiáticas e as conseqüências que elas ocasionam na formação e no estabelecimento das subjetividades contemporâneas. Se por um lado esse campo cibernético de rede social cria condições para enriquecimento da vida humana, por outro, também mantém estratégias de adestramento e alienação das subjetividades que a ele estão expostas.
Vamos, pois, a essa rede social, na qual um grande número de usuários brasileiros estão imersos diuturnamente. Se de início nosso olhar foi de flânerie, com entradas e uso lúdicos do dispositivo cibernético que é o orkut, em seguida, nosso olhar procurou e procura meios objetivos para descrever, analisar a estruturalidade e funcionalidade dessa poderosa ferramenta encarregada da construção/manutenção de determinadas formações subjetivas.
Essa rede social, que é o orkut, dá seus primeiros passos no campo de uma vasta e complexa gama de instrumentos midiáticos. Mesmo sendo seus primeiros passos, parece que tais passos já indicam o gigantismo da rede e de sua influência junto a uma grande contingente de usuários. Tal dispositivo midiático foi criado pelo turco Orkut Büyükkokten em 2004, nos laboratórios do Google (daí o nome da tal rede!). Rapidamente disseminou-se pelo mundo inteiro, antes nos EUA e em países europeus, para em seguida ser adotada (ou seqüestrada?) com grande vigor por países como o Brasil e a Índia. Atualmente, o Brasil é o país com o maior número de usuários dessa rede, contabilizando mais de vinte e três milhões de usuários.
Seu objetivo oficial era o de oferecer condições virtuais para que seus usuários estabelecessem novas amizades, encontrassem pessoas com atividades afins e mantivessem os vínculos de amizades já existentes. Sabemos que tais funcionalidades foram muito ultrapassadas em seu intento inicial. Um rol de numerosas outras atividades pode ser percebido nas ações dos usuários de hoje. Porém, uma das mais importantes funções de tal rede é a de propiciar condições para que fluxos subjetivos adentrem no campo do ciberespaço, estabelecendo nesse espaço condições existências variadas.
A princípio refletimos sobre os ganhos que essa rede traz aos seus usuários: encurtar distâncias; redescobrir pessoas do passado; cultivar vínculos afetivos; destruir vínculos afetivos; conhecer novas pessoas; conhecer novos lugares e situações, através da leitura de recados seus e alheios; bem como conhecer lugares, objetos e referenciais desconhecidos através dos álbuns de fotografia; apreciar músicas e vídeos de participantes da rede; entre tantas outras modalidades de vínculo e produtividade de natureza afetiva e social.
CARTOGRAFIAS CONSERVADORAS
Como qualquer programa do mundo virtual, o orkut assemelha-se a uma plataforma com lugares accionais pré-estabelecidos. O usuário, ao inscrever-se, recebe espaços nos quais pode atuar. Alguns desses espaços, no início das atividades dessa rede, eram de uso obrigatório, como a identificação pessoal e o país, entre outros. Porém, com o decorrer do tempo, vários espaços propostos pelo programa deixaram de ser preenchidos pelos usuários. Apesar disso, a estrutura realmente é fixa nas propostas de se oferecer um quadro geral, social, profissional, e pessoal, além das formas de contato (endereço e telefone) entre os membros da rede.
Pragmaticamente, o usuário da rede possui campos identitários que podem ser predominantemente preenchidos por ele e, indiretamente, pelos outros membros de sua rede. Os campos mais significativos dizem respeito ao caderno de recados, à rede de amigos, aos álbuns de fotografia, aos vídeos e às comunidades. Tal modelo pretende dar conta de certa integralidade subjetiva, tratando-se, pois, da tentativa de efetivação de um ideal de representação da subjetividade que entra no jogo dessas específicas relações cibernéticas.
Esses espaços identitários fornecem rígidas diretrizes para a ação do usuário, pois ele não tem permissão para alterar os parâmetros da estruturalidade que é dada de modo apriorístico e assegurada por um código de regras de funcionamento. Muito menos o usuário tem condição de modificar os pontos centrais do que seria a funcionalidade esperada pelo programa. Um dos poucos momentos de liberdade accional do usuário é a sua opção de escolher as pessoas que irão participar de sua rede. Mesmo nesse tópico, o programa estrategicamente lhe oferece um número considerável de usuários com os quais supostamente o perfil específico poderia se relacionar.
Em seus primórdios, o orkut exigia que a entrada de novos usuários fosse feita mediante convite de quem já era membro. No entanto, posteriormente, permitiu-se que o próprio usuário registrasse-se e começasse a fazer sua própria rede, sob parâmetros já dados.
Vimos que os espaços construídos elaboram um roteiro pré-fixado de uso. Esses roteiros estão em franca mutação que, aparentemente, surgem das necessidades ações sugeridas pelos membros ou pelo misterioso escritório- central do orkut. Se no primeiro ano, as regras de uso apresentavam-se dacronianas, nos anos seguintes, novos mecanismos de ação foram sendo implementados. Em 2008, como se vê no histórico do programa, mais de vinte novos procedimentos foram desenvolvidos e aplicados.
Desses procedimentos, os mais notórios dizem respeito à consolidação da privacidade do material do usuário em relação à rede geral e a sua rede específica. Se antes os recados, ponto nevrálgico desse tipo de rede social, eram visíveis para toda a rede, atualmente há a opção de deixá-los visíveis apenas para rede específica; ou, então, apenas para algumas pessoas dessa rede específica. O mesmo ocorre com os álbuns de fotos, com os vídeos musicais e outros arquivos de dados responsáveis pelo exercício identitário via socialização.
Como apontamos antes, a estruturalidade do orkut cria espaços existenciais apriorísticos. Campos como dados gerais, sociais, profissionais, pessoal, entre outros de menor visibilidade, direcionam o usuário a localizar-se como subjetividade substancial e cêntrica. O conceito de personalidade usado é aquele da psicologia e da filosofia positivistas que asseguram ser o sujeito um conjunto fechado de características estabilizadas por um rigoroso princípio de conservação.
Dessa forma, um perfil de usuário no orkut deveria corresponder à imagem simétrica que deveríamos ter de nós mesmos ao nos olharmos em um límpido espelho. Teríamos, como nos ensina Jacques Lacan (2001) a ilusão de uma integralidade físico/subjetiva como aquela da criança que se sente singular diante de um espelho e, consequentemente, sentir-se-ia singular diante do mundo a sua volta. A sensação de integralidade e de individualidade criaria o sentimento de pertença egocêntrica, que separaria a dimensão interior do sujeito, o seu foro íntimo, daquela dimensão da exterioridade coisal representada pelos outros sujeitos e pelo mundo no qual a subjetividade egóica-especular estaria inserida.
O dispositivo cibernético do orkut é programado para encenar essa integralidade do sujeito da ação. Sua contrapartida são os outros variados mundos subjetivos com os quais se abrem os vínculos existenciais. Nessa relação, como já mencionamos, um dos básicos princípios reguladores de tais relações é o princípio da conservação. O usuário produz suas relações, preenche os campos permitidos com seus dados e mantém sua produtividade sob os parâmetros de equilibração e conservação.
Quando surgem mais mecanismos que consolidam o contexto de privacidade do perfil do usuário, adensa-se a sensação e o sentimento de estruturação verticalizada da subjetividade. O sujeito teria, então, encontrado seu verdadeiro eu, ao lado de pessoas com as quais simetricamente se identifica. Essa verticalização quantitativa e qualitativa acentuaria a ilusão da imagem especular da qual Lacan tratou.
A ilusão do ego centrado seria um dos resultados centrais dessa rede social específica e de outras redes sociais similares que pouco se diferenciam quanto à estruturalidade e funcionalidade. Quando abrimos um perfil de usuário do orkut, temos as linhas de força da construção de um campo egóico. Aparentemente todos os dados ali registrados convergem para a construção de um campo existencial que não permite margens para interpretações ambíguas. A subjetividade exposta estaria totalmente marcada por uma racionalidade, por afetos e instintos que deveriam ser previsíveis. Mesmo quando não conhecemos o dono do perfil pessoalmente, pelos seus dados pessoais, dados profissionais, fotos, músicas, comunidades e sua rede de amigos, teríamos dados suficientes para elaborarmos uma cartografia bastante previsível e confiável do ponto de vista relacional.
Nesse quadro, temos que o orkut é uma realidade cibernética que, em um primeiro momento de descrição e análise, não contribui para descolamentos existenciais verdadeiramente produtivos, já que sua roteirização apriorística impediria o usuários de abordar outros campos accionais de acordo com seus interesses mais verticalizados e menos padronizados. A padronização do roteiro de ação determinaria um empobrecimento do exercício de criatividade, de produtividade, de imaginação, enfim, de enriquecimento subjetivo, social e, naturalmente, político.
Ao lado da constatação fácil de que tal rede de relacionamentos articula e consolida cartografias subjetivas conservadoras, há ainda a constatação de que essa rede gera conseqüências imediatas no mundo cotidiano de seus usuários. Como qualquer outro circuito de comunicação, o orkut gera conseqüências mais do que virtuais, ele gera conseqüência bem palpáveis, tais como: encontros reais; agendamentos de compromissos; contratos de variadas ordens; compromissos os mais heterogêneos; agenciamentos heterogêneos do desejo. Ou seja, sua ação dinamiza a vida real. E talvez tal dinamismo venha a se tornar mais potente do que os registros de conteúdos e sentidos veiculados por toda uma mídia pré-redes virtuais.
Disso surge a necessidade de compreendermos a estrutura e funcionalidade desse mecanismo que, ao contrário do exercício de olhar poetizado por Baudelaire, acaba por ancorar as subjetividades em situações que ela desconhece, pois que se encontra alienada pelo processo em que se insere.
CARTOGRAFIAS EMANCIPADORAS E LIBERTÁRIAS
Do conceito de subjetividade cêntrica e substancial, contestado por Lacan e por tantos outros pensadores movidos por uma epistemologia da subjetividade em constante fluxo, somos levados para a dimensão do sujeito caracterizado por seu devir, conceito este que surge na esteira dos estudos de Gilles Deleuze (1995, 1996, 1997). A subjetividade do devir seria aquela instância em constante movimento de interpenetração com os seres (de qualquer natureza e ordem) que estão em seu campo de contato direto ou indireto.
Pessoas identificam-se com pessoas, sob o clássico enfoque ontológico. Na contemporaneidade, sabemos que pessoas também se identificam com animais, com vegetais, com seres do reino mineral, com produtos e programas criados pelas variadas tecnologias. E se, em um primeiro instante, podemos acompanhar o usuário do orkut sendo direcionado, pelo agenciamento de enunciação (GUATTARI, 2001) que é o roteiro pré-fixado de ações, em momento posterior, acompanhamos essas identificações assumindo também a natureza de devir heterogêneo, inclusive o devir maquínico.
Sabemos que Animais já têm seus perfis no orkut. Donos amorosos, e similares, dão um lugar de destaque aos seus cães, gatos, aves, plantas, frutas entre outros seres e coisas, que passam a ser titulares de perfis, de comunidades, de fotos e vídeos. Ou seja, a subjetividade antropocêntrica desloca-se em devires animais e maquínicos, apesar dos rigores antropológicos em se valorizar a condição humana como grandeza existencial que deveria ocupar o topo da hierarquia.
Subjetividades em devires podem funcionar como estratégias para burlar territórios existenciais fechados pela estruturalidade e funcionalide dessas redes sociais. Se a idéia de egoicidade íntegra e individual, apesar dos vínculos estabelecidos pela rede, é o motor do sistema, possibilidades de identificação com variados seres e dispositivos minimizam o preenchimento das máscaras comportamentais previsíveis.
Desse modo, o princípio de conservação é colocado em plano inferior. Outro princípio, o da alteridade identitária do constante movimento intersubjetivo, marca as ações do usuário que pode deslocar-se do campo de sujeito apassivado e alienado para o papel de sujeito mais ativo e essencial móvel de ações que preencherão espaços de acordo com intentos não exclusivamente padronizados.
Pragmaticamente, nossas sociedades de controle não apreciam tais liberdades de ação e posicionamento. Sabemos que departamentos pessoais de variadas empresas, e órgãos afins, já entrevistam candidatos a vagas de trabalho, tendo o orkut do candidato nas mãos. Normalmente, tais empresas, e correlatos, são dirigidas por noções de personalidades cêntricas, previsíveis e equilibradas do ponto de vista subjetivo e social. Assim, linhas de representação tradicionais e conservadoras dão os pontos positivos que criarão as condições para que o currículo cibernético da pessoa seja aceito ou recusado.
Como se estruturaria um currículo cibernético, como o perfil de um usuário do orkut ou de redes similares, recusado por instituições que conservam a tradição de uma sociedade? Muito provavelmente os dados recusados seriam aqueles que apresentam explicitamente elementos que atentam contra a moral e os bons costumes. Registros de ordem sexual, econômica, étnica, religiosa, entre outras, quando não contemplam os valores estabelecidos pelo senso comum, estão entre os grandes complicadores de um retrato pessoal estruturado e veiculado pela rede social.
Além dos materiais explicitamente recusados, teríamos aqueles materiais de recusa mais implícita, tais como aqueles constituídos por uma heterogeneidade semântica presentes nos registros. Recados, no caderno de recados, de natureza variável e com conotação moral variada, causam mal-estar. Fotos de referentes exóticos ou não-aceitos causam mal-estar. Comunidades com dados perturbadores causam mal-estar. E assim por diante. Esse mal-estar surge da estranheza frente ao imprevisível e, por vezes, à radicalidade do outro que pode ser bem diferente da constituição dos valores padronizados de nossa sociedade. E não estamos aqui a falar sobre registros de fatos e situações de notória infração, tais como pedofilia, sexo explícito, racismo, preconceito religioso, entre tantas outros de cunho recorrente em tais redes. Estamos a pensar em registros de dados que não possibilitam formamos um perfil centrado e previsível do usuário.
Se, por exemplo, temos, em uma lista de comunidades, a expressão de amor por um time de futebol, achamos contraditório que também aí haja a expressão de amor por um time rival. Se temos a expressão de um valor determinado, logicamente a expressão de um valor antagônico já nos causaria a desagradável sensação de estranhamento, oriundo o pensamento dualista que norteiam nossas noções de valores, que funciona como um poderoso parâmetro de avaliação moral do usuário.
Esse estranhamento, no entanto, é o sintoma de que a subjetividade estaria deslocando-se rizomaticamente (DELEUZE: 1995) pelos desvãos do dispositivo cibernético que a tenta controlar com todas as suas estratégias de padronização.
A subjetividade rizomática espraia-se por possibilidades de ação que o sistema não consegue controlar ainda. Dessas possibilidades, temos produções subjetivas capazes de descobrir e usar condições pragmáticas de enriquecimento existencial, sem ficarem presas à previsibilidade dogmática de uma cartografia existencial mantida pelo princípio de conservação.
Não entramos aqui, temos que ressaltar, no campo de atividades completamente anti-sociais que vários agenciamos de enunciação de sentidos e de realidades são capazes de fazer. Subjetividades não estão acima do bem e do mal para darem curso livre a sua complexa energia de vida. Prendem-se, sim, a diretrizes da vida coletiva que, sabemos, não têm a obrigação de ser tão limitadas quanto às possibilidades de ação do sujeito.
Nesse contexto de possíveis desterritorializações, algumas práticas podem enriquecer o uso do dispositivo cibernético que é a rede social. Os devires animais, coisais e maquínicos criam um campo aberto a novas experiências, sensações e sentidos. O uso artístico dos campos pré-fixados desmobiliza a assepsia imposta pela comunicação pragmática. A variabilidade de interesses, demonstrada pelas comunidades adotadas pelos usuários, emolduram desejos de deslocamentos que podem estabelecer produtividades de outras ordens, mesmo ordens fora do circuito capitalista de existência. A heterogeneidade do gosto musical, expressa na coleção de vídeos, cria a saudável iconoclastia do usuário frente a inumeráveis universos de produção que sua sociedade pode lhe oferecer.
Vários perfis das redes sociais são verdadeiros ateliês de produções artísticas já concluídas ou in progress. Outros perfis funcionam como espaços nos quais uma grande gama de temas são discutidos de modo sério, criativo e cooperativo. Ou seja, um mecanismo criado para massificar comportamentos, em vários contextos pode ser desconstruído e reconstruído sob condições que possibilitam e incentivam a constituição de subjetividades em rico devires.
O orkut, tal qual um ser vivo, está em constante evolução. De sua natureza de agenciamento coletivo de enunciação alienadora de subjetividades em série, pode deslocar-se em instrumento de comunicação em que a liberdade de escolha e de ação possa talvez ser a dinâmica recorrente.
Atualmente, essa capacidade libertária parece enfraquecer-se diante dos variados mecanismos cautelares que o sistema implementa. Chaves de segurança são criadas, como já mencionamos, para trancar cadernos de recados, álbuns de fotografias, vídeos, depoimentos e outros espaços de registro identitário. Uma forte tendência de privatização do arquivo de dados configura o atual usuário. Torna-se raro vermos perfis francamente abertos, nos quais os usuários colocam suas constituições pessoais nessa grande “ágora” cibernética. As sub-redes estão se fechando cada vez mais e a espontaneidade coletiva é obrigada a dar lugar a estratégias cautelares que são predominantemente de ordem moral e pragmática.
CONCLUSÃO
Voltamos ao olhar de flânerie, exercitado por Baudelaire, e sistematizado por Benjamin frente à massificação da vida feita pelas cartografias sócio-político-culturais da modernidade. W. Benjamin, conta-nos sobre esse olhar desligado dos excessivos pragmatismos, quando anda por uma grande cidade européia:
Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas, que anos a fio eu evitara, tornou-se para mim, de um só lance, abarcável numa visão de conjunto, quando um dia uma pessoa amada se mudou para lá. Era como se em sua janela um projetor estivesse instalado e decompusesse a região com feixes de luz.
(2001, p.75).
Nossas cidades contemporâneas também estão recriadas na rede social do orkut e em outras redes sociais. Esse espaço cibernético reflete quase que simetricamente a realidade física na qual estamos inseridos. Há, pois, como no espaço da vida cotidiana, diretrizes de massificação e de alienação do sujeito. Nesses espaços existenciais também existem diretrizes que fomentam o esclarecimento e a liberdade para as subjetividades transformarem suas estruturalidades e funcionalidades que naturalmente deslocam-se de modo rizomático nos variados devires em que sãos feitas.
Um olhar de flânerie, seguido por uma postura analítica e crítica, permite-nos ver o complexo e intenso mundo criado pelo dispositivo do orkut, e redes afins. Com essa leitura caridosa, no sentido filosófico do termo, não demonizamos essa poderosa ferramenta de agenciamentos de enunciação subjetivo-social. Ao contrário, dimensionamos nossas heterogêneas cartografias subjetivas em um campo existencial cibernético capaz de funcionar como locus e meio para a efetivação de produtividade, de criatividade e de deslocamentos necessários que tornam o sujeito agente competente e consciente de sua própria ação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BENJAMIN, Walter. Ouvres III. Paris: Gallimard, 2000.
DELEUZE, Gilles. Mil Platôs. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
_______. Mil Platôs. Vol. 3. Trad. deAurélio Guerra Netto et al. São Paulo: Ed. 34, 1996.
_______. Mil Platôs. Vol. 4. Trad. deSuely rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L'Anti-Oedipe: capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 2005.
GUATTARI, Félix. Da produção de Subjetividade. In: PARENTE, André (org). Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Ed. 34, 1993.
JAKOBSON, Roman. Linguagem e comunicação. São Paulo: Cultix, 1971.
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 2001.
PARENTE, André (org). Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Ed. 34, 1993.
Wikipedia. Orkut. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut >. Acesso em 25 mai. 2009.