segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cartografias subjetivas na cibercultura: o caso da rede social do orkut




Circuitos comunicacionais (JAKOBSON:1971) estabelecem condições de comunicação e expressão de referenciais do universo ego-sócio-cultural por subjetividades emissoras/receptoras. Se a formalização rigorosa de esquemas comunicacionais normalmente não atentam para a subjetividade personalizadasdos usuários inseridos no processo, o pesquisador deve fazer o resgate do elemento humano que ainda é a razão de ser da existência desses sistemas. Nesse quadro, acompanharemos alguns aspectos da estruturalidade e da funcionalidade de um desses dispositivos comunicacionais, de esfera cibernética, que é a rede social do orkut.


Tal rede de comunicação social pode consolidar cartografias subjetivas em franco processo de homogeneização e alienação, quando oferece roteiros rígidos de ação do usuário. No entanto, dinâmicas de flexibilização e de deslocamentos processuais e existenciais criam estratégias que asseguram a produção e a manutenção de cartografias subjetivas criativas, produtivas e conhecedoras do espaço gerador dessas representações.



O DISPOSITIVO DA REDE SOCIAL


Charles Baudelaire encanta-nos, entre tantos sentidos e nuances de sua obra poética, quando nos apresenta sua peculiar estratégia de olhar a realidade a sua volta sob a dinâmica da flânerie. Seu olhar flana pela Paris já industrializada do século dezenove. Sob cheiros e fumaças das chaminés; ao largo das ruas tomadas por comércios e consumidores sedentos das últimas novidades fabris e tecnológicas; imerso na massa anônima de trabalhadores; sob os resquícios da aristocracia européia; e influenciado por segmentos vigorosos de burgueses endinheirados e sedentos de consumir bens materiais e imateriais, Baudelaire fala-nos sobre o exercício existencial de olhar o mundo a sua volta em regime de desligamento lúdico, em um primeiro momento, e esclarecido, em momento posterior.


Walter Benjamin (2000), pensando a cultura da modernidade, resgata-nos a modalidade de olhar baudelaireano que procura descobrir o que seriam as verdadeiras razões existenciais do ser humano em franca época de territorializações tecnológicas, com todas suas decorrências de desumanização. Esse contexto, de consolidação fabril e tecnológica, coloca as subjetividades em regime de estupor, de incompreensão, além de investi-las da condição de instância alienada de produção e de consumo em relação ao que acontece em seus foros íntimos, com os demais seres e com o aqui e agora em que irremediavelmente estão inseridas.


A Paris de Baudelaire e a Europa de Benjamin não tinham ainda o mundo cibernético que conhecemos hoje. Computadores e suas interfaces variadas existiam apenas em embriões de projetos teóricos. No entanto, já existiam as redes sociais que juntavam pessoas em pólos de interesses afins.


Contemporaneamente, estamos em densa era da vida humana estabelecida na e pela realidade cibernética. Nosso cotidiano virtualizou-se de modo factual, corroborando a mais arrojada ficção científica sobre o tema. O corpo humano ganhou novos membros, agora cibernéticos, que à moda dos apêndices, tornaram-se essenciais a uma vasta gama de atividades. Usamos editores de textos, lemos jornais e revistas, acessamos rádio e televisão, acompanhamos blogs, fotoblogs e afins, programamos nossa vida de acordo com variados softwares; enfim, realmente nossa vida está impregnada e, mesmo, está sendo cartografada pelo universo cibernético.


De dispositivo tecnológico de difícil acesso, o computador tornou-se instrumento de registro, acúmulo e distribuição de dados das mais heterogêneas naturezas, meio de criatividade para artistas e congêneres, e, de modo instigante, meio de comunicação e subjetivação pessoal.


Interessa-nos de perto esse tema da comunicação e subjetivação pessoal. Entre os variados programas para tais fins, escolhemos a rede social do orkut para refletirmos sobre suas estratégias midiáticas e as conseqüências que elas ocasionam na formação e no estabelecimento das subjetividades contemporâneas. Se por um lado esse campo cibernético de rede social cria condições para enriquecimento da vida humana, por outro, também mantém estratégias de adestramento e alienação das subjetividades que a ele estão expostas.


Vamos, pois, a essa rede social, na qual um grande número de usuários brasileiros estão imersos diuturnamente. Se de início nosso olhar foi de flânerie, com entradas e uso lúdicos do dispositivo cibernético que é o orkut, em seguida, nosso olhar procurou e procura meios objetivos para descrever, analisar a estruturalidade e funcionalidade dessa poderosa ferramenta encarregada da construção/manutenção de determinadas formações subjetivas.


Essa rede social, que é o orkut, dá seus primeiros passos no campo de uma vasta e complexa gama de instrumentos midiáticos. Mesmo sendo seus primeiros passos, parece que tais passos já indicam o gigantismo da rede e de sua influência junto a uma grande contingente de usuários. Tal dispositivo midiático foi criado pelo turco Orkut Büyükkokten em 2004, nos laboratórios do Google (daí o nome da tal rede!). Rapidamente disseminou-se pelo mundo inteiro, antes nos EUA e em países europeus, para em seguida ser adotada (ou seqüestrada?) com grande vigor por países como o Brasil e a Índia. Atualmente, o Brasil é o país com o maior número de usuários dessa rede, contabilizando mais de vinte e três milhões de usuários.


Seu objetivo oficial era o de oferecer condições virtuais para que seus usuários estabelecessem novas amizades, encontrassem pessoas com atividades afins e mantivessem os vínculos de amizades já existentes. Sabemos que tais funcionalidades foram muito ultrapassadas em seu intento inicial. Um rol de numerosas outras atividades pode ser percebido nas ações dos usuários de hoje. Porém, uma das mais importantes funções de tal rede é a de propiciar condições para que fluxos subjetivos adentrem no campo do ciberespaço, estabelecendo nesse espaço condições existências variadas.


A princípio refletimos sobre os ganhos que essa rede traz aos seus usuários: encurtar distâncias; redescobrir pessoas do passado; cultivar vínculos afetivos; destruir vínculos afetivos; conhecer novas pessoas; conhecer novos lugares e situações, através da leitura de recados seus e alheios; bem como conhecer lugares, objetos e referenciais desconhecidos através dos álbuns de fotografia; apreciar músicas e vídeos de participantes da rede; entre tantas outras modalidades de vínculo e produtividade de natureza afetiva e social.



CARTOGRAFIAS CONSERVADORAS


Como qualquer programa do mundo virtual, o orkut assemelha-se a uma plataforma com lugares accionais pré-estabelecidos. O usuário, ao inscrever-se, recebe espaços nos quais pode atuar. Alguns desses espaços, no início das atividades dessa rede, eram de uso obrigatório, como a identificação pessoal e o país, entre outros. Porém, com o decorrer do tempo, vários espaços propostos pelo programa deixaram de ser preenchidos pelos usuários. Apesar disso, a estrutura realmente é fixa nas propostas de se oferecer um quadro geral, social, profissional, e pessoal, além das formas de contato (endereço e telefone) entre os membros da rede.


Pragmaticamente, o usuário da rede possui campos identitários que podem ser predominantemente preenchidos por ele e, indiretamente, pelos outros membros de sua rede. Os campos mais significativos dizem respeito ao caderno de recados, à rede de amigos, aos álbuns de fotografia, aos vídeos e às comunidades. Tal modelo pretende dar conta de certa integralidade subjetiva, tratando-se, pois, da tentativa de efetivação de um ideal de representação da subjetividade que entra no jogo dessas específicas relações cibernéticas.


Esses espaços identitários fornecem rígidas diretrizes para a ação do usuário, pois ele não tem permissão para alterar os parâmetros da estruturalidade que é dada de modo apriorístico e assegurada por um código de regras de funcionamento. Muito menos o usuário tem condição de modificar os pontos centrais do que seria a funcionalidade esperada pelo programa. Um dos poucos momentos de liberdade accional do usuário é a sua opção de escolher as pessoas que irão participar de sua rede. Mesmo nesse tópico, o programa estrategicamente lhe oferece um número considerável de usuários com os quais supostamente o perfil específico poderia se relacionar.


Em seus primórdios, o orkut exigia que a entrada de novos usuários fosse feita mediante convite de quem já era membro. No entanto, posteriormente, permitiu-se que o próprio usuário registrasse-se e começasse a fazer sua própria rede, sob parâmetros já dados.


Vimos que os espaços construídos elaboram um roteiro pré-fixado de uso. Esses roteiros estão em franca mutação que, aparentemente, surgem das necessidades ações sugeridas pelos membros ou pelo misterioso escritório- central do orkut. Se no primeiro ano, as regras de uso apresentavam-se dacronianas, nos anos seguintes, novos mecanismos de ação foram sendo implementados. Em 2008, como se vê no histórico do programa, mais de vinte novos procedimentos foram desenvolvidos e aplicados.


Desses procedimentos, os mais notórios dizem respeito à consolidação da privacidade do material do usuário em relação à rede geral e a sua rede específica. Se antes os recados, ponto nevrálgico desse tipo de rede social, eram visíveis para toda a rede, atualmente há a opção de deixá-los visíveis apenas para rede específica; ou, então, apenas para algumas pessoas dessa rede específica. O mesmo ocorre com os álbuns de fotos, com os vídeos musicais e outros arquivos de dados responsáveis pelo exercício identitário via socialização.


Como apontamos antes, a estruturalidade do orkut cria espaços existenciais apriorísticos. Campos como dados gerais, sociais, profissionais, pessoal, entre outros de menor visibilidade, direcionam o usuário a localizar-se como subjetividade substancial e cêntrica. O conceito de personalidade usado é aquele da psicologia e da filosofia positivistas que asseguram ser o sujeito um conjunto fechado de características estabilizadas por um rigoroso princípio de conservação.


Dessa forma, um perfil de usuário no orkut deveria corresponder à imagem simétrica que deveríamos ter de nós mesmos ao nos olharmos em um límpido espelho. Teríamos, como nos ensina Jacques Lacan (2001) a ilusão de uma integralidade físico/subjetiva como aquela da criança que se sente singular diante de um espelho e, consequentemente, sentir-se-ia singular diante do mundo a sua volta. A sensação de integralidade e de individualidade criaria o sentimento de pertença egocêntrica, que separaria a dimensão interior do sujeito, o seu foro íntimo, daquela dimensão da exterioridade coisal representada pelos outros sujeitos e pelo mundo no qual a subjetividade egóica-especular estaria inserida.


O dispositivo cibernético do orkut é programado para encenar essa integralidade do sujeito da ação. Sua contrapartida são os outros variados mundos subjetivos com os quais se abrem os vínculos existenciais. Nessa relação, como já mencionamos, um dos básicos princípios reguladores de tais relações é o princípio da conservação. O usuário produz suas relações, preenche os campos permitidos com seus dados e mantém sua produtividade sob os parâmetros de equilibração e conservação.


Quando surgem mais mecanismos que consolidam o contexto de privacidade do perfil do usuário, adensa-se a sensação e o sentimento de estruturação verticalizada da subjetividade. O sujeito teria, então, encontrado seu verdadeiro eu, ao lado de pessoas com as quais simetricamente se identifica. Essa verticalização quantitativa e qualitativa acentuaria a ilusão da imagem especular da qual Lacan tratou.


A ilusão do ego centrado seria um dos resultados centrais dessa rede social específica e de outras redes sociais similares que pouco se diferenciam quanto à estruturalidade e funcionalidade. Quando abrimos um perfil de usuário do orkut, temos as linhas de força da construção de um campo egóico. Aparentemente todos os dados ali registrados convergem para a construção de um campo existencial que não permite margens para interpretações ambíguas. A subjetividade exposta estaria totalmente marcada por uma racionalidade, por afetos e instintos que deveriam ser previsíveis. Mesmo quando não conhecemos o dono do perfil pessoalmente, pelos seus dados pessoais, dados profissionais, fotos, músicas, comunidades e sua rede de amigos, teríamos dados suficientes para elaborarmos uma cartografia bastante previsível e confiável do ponto de vista relacional.


Nesse quadro, temos que o orkut é uma realidade cibernética que, em um primeiro momento de descrição e análise, não contribui para descolamentos existenciais verdadeiramente produtivos, já que sua roteirização apriorística impediria o usuários de abordar outros campos accionais de acordo com seus interesses mais verticalizados e menos padronizados. A padronização do roteiro de ação determinaria um empobrecimento do exercício de criatividade, de produtividade, de imaginação, enfim, de enriquecimento subjetivo, social e, naturalmente, político.


Ao lado da constatação fácil de que tal rede de relacionamentos articula e consolida cartografias subjetivas conservadoras, há ainda a constatação de que essa rede gera conseqüências imediatas no mundo cotidiano de seus usuários. Como qualquer outro circuito de comunicação, o orkut gera conseqüências mais do que virtuais, ele gera conseqüência bem palpáveis, tais como: encontros reais; agendamentos de compromissos; contratos de variadas ordens; compromissos os mais heterogêneos; agenciamentos heterogêneos do desejo. Ou seja, sua ação dinamiza a vida real. E talvez tal dinamismo venha a se tornar mais potente do que os registros de conteúdos e sentidos veiculados por toda uma mídia pré-redes virtuais.


Disso surge a necessidade de compreendermos a estrutura e funcionalidade desse mecanismo que, ao contrário do exercício de olhar poetizado por Baudelaire, acaba por ancorar as subjetividades em situações que ela desconhece, pois que se encontra alienada pelo processo em que se insere.



CARTOGRAFIAS EMANCIPADORAS E LIBERTÁRIAS


Do conceito de subjetividade cêntrica e substancial, contestado por Lacan e por tantos outros pensadores movidos por uma epistemologia da subjetividade em constante fluxo, somos levados para a dimensão do sujeito caracterizado por seu devir, conceito este que surge na esteira dos estudos de Gilles Deleuze (1995, 1996, 1997). A subjetividade do devir seria aquela instância em constante movimento de interpenetração com os seres (de qualquer natureza e ordem) que estão em seu campo de contato direto ou indireto.


Pessoas identificam-se com pessoas, sob o clássico enfoque ontológico. Na contemporaneidade, sabemos que pessoas também se identificam com animais, com vegetais, com seres do reino mineral, com produtos e programas criados pelas variadas tecnologias. E se, em um primeiro instante, podemos acompanhar o usuário do orkut sendo direcionado, pelo agenciamento de enunciação (GUATTARI, 2001) que é o roteiro pré-fixado de ações, em momento posterior, acompanhamos essas identificações assumindo também a natureza de devir heterogêneo, inclusive o devir maquínico.


Sabemos que Animais já têm seus perfis no orkut. Donos amorosos, e similares, dão um lugar de destaque aos seus cães, gatos, aves, plantas, frutas entre outros seres e coisas, que passam a ser titulares de perfis, de comunidades, de fotos e vídeos. Ou seja, a subjetividade antropocêntrica desloca-se em devires animais e maquínicos, apesar dos rigores antropológicos em se valorizar a condição humana como grandeza existencial que deveria ocupar o topo da hierarquia.


Subjetividades em devires podem funcionar como estratégias para burlar territórios existenciais fechados pela estruturalidade e funcionalide dessas redes sociais. Se a idéia de egoicidade íntegra e individual, apesar dos vínculos estabelecidos pela rede, é o motor do sistema, possibilidades de identificação com variados seres e dispositivos minimizam o preenchimento das máscaras comportamentais previsíveis.


Desse modo, o princípio de conservação é colocado em plano inferior. Outro princípio, o da alteridade identitária do constante movimento intersubjetivo, marca as ações do usuário que pode deslocar-se do campo de sujeito apassivado e alienado para o papel de sujeito mais ativo e essencial móvel de ações que preencherão espaços de acordo com intentos não exclusivamente padronizados.


Pragmaticamente, nossas sociedades de controle não apreciam tais liberdades de ação e posicionamento. Sabemos que departamentos pessoais de variadas empresas, e órgãos afins, já entrevistam candidatos a vagas de trabalho, tendo o orkut do candidato nas mãos. Normalmente, tais empresas, e correlatos, são dirigidas por noções de personalidades cêntricas, previsíveis e equilibradas do ponto de vista subjetivo e social. Assim, linhas de representação tradicionais e conservadoras dão os pontos positivos que criarão as condições para que o currículo cibernético da pessoa seja aceito ou recusado.


Como se estruturaria um currículo cibernético, como o perfil de um usuário do orkut ou de redes similares, recusado por instituições que conservam a tradição de uma sociedade? Muito provavelmente os dados recusados seriam aqueles que apresentam explicitamente elementos que atentam contra a moral e os bons costumes. Registros de ordem sexual, econômica, étnica, religiosa, entre outras, quando não contemplam os valores estabelecidos pelo senso comum, estão entre os grandes complicadores de um retrato pessoal estruturado e veiculado pela rede social.


Além dos materiais explicitamente recusados, teríamos aqueles materiais de recusa mais implícita, tais como aqueles constituídos por uma heterogeneidade semântica presentes nos registros. Recados, no caderno de recados, de natureza variável e com conotação moral variada, causam mal-estar. Fotos de referentes exóticos ou não-aceitos causam mal-estar. Comunidades com dados perturbadores causam mal-estar. E assim por diante. Esse mal-estar surge da estranheza frente ao imprevisível e, por vezes, à radicalidade do outro que pode ser bem diferente da constituição dos valores padronizados de nossa sociedade. E não estamos aqui a falar sobre registros de fatos e situações de notória infração, tais como pedofilia, sexo explícito, racismo, preconceito religioso, entre tantas outros de cunho recorrente em tais redes. Estamos a pensar em registros de dados que não possibilitam formamos um perfil centrado e previsível do usuário.


Se, por exemplo, temos, em uma lista de comunidades, a expressão de amor por um time de futebol, achamos contraditório que também aí haja a expressão de amor por um time rival. Se temos a expressão de um valor determinado, logicamente a expressão de um valor antagônico já nos causaria a desagradável sensação de estranhamento, oriundo o pensamento dualista que norteiam nossas noções de valores, que funciona como um poderoso parâmetro de avaliação moral do usuário.


Esse estranhamento, no entanto, é o sintoma de que a subjetividade estaria deslocando-se rizomaticamente (DELEUZE: 1995) pelos desvãos do dispositivo cibernético que a tenta controlar com todas as suas estratégias de padronização.


A subjetividade rizomática espraia-se por possibilidades de ação que o sistema não consegue controlar ainda. Dessas possibilidades, temos produções subjetivas capazes de descobrir e usar condições pragmáticas de enriquecimento existencial, sem ficarem presas à previsibilidade dogmática de uma cartografia existencial mantida pelo princípio de conservação.


Não entramos aqui, temos que ressaltar, no campo de atividades completamente anti-sociais que vários agenciamos de enunciação de sentidos e de realidades são capazes de fazer. Subjetividades não estão acima do bem e do mal para darem curso livre a sua complexa energia de vida. Prendem-se, sim, a diretrizes da vida coletiva que, sabemos, não têm a obrigação de ser tão limitadas quanto às possibilidades de ação do sujeito.


Nesse contexto de possíveis desterritorializações, algumas práticas podem enriquecer o uso do dispositivo cibernético que é a rede social. Os devires animais, coisais e maquínicos criam um campo aberto a novas experiências, sensações e sentidos. O uso artístico dos campos pré-fixados desmobiliza a assepsia imposta pela comunicação pragmática. A variabilidade de interesses, demonstrada pelas comunidades adotadas pelos usuários, emolduram desejos de deslocamentos que podem estabelecer produtividades de outras ordens, mesmo ordens fora do circuito capitalista de existência. A heterogeneidade do gosto musical, expressa na coleção de vídeos, cria a saudável iconoclastia do usuário frente a inumeráveis universos de produção que sua sociedade pode lhe oferecer.


Vários perfis das redes sociais são verdadeiros ateliês de produções artísticas já concluídas ou in progress. Outros perfis funcionam como espaços nos quais uma grande gama de temas são discutidos de modo sério, criativo e cooperativo. Ou seja, um mecanismo criado para massificar comportamentos, em vários contextos pode ser desconstruído e reconstruído sob condições que possibilitam e incentivam a constituição de subjetividades em rico devires.


O orkut, tal qual um ser vivo, está em constante evolução. De sua natureza de agenciamento coletivo de enunciação alienadora de subjetividades em série, pode deslocar-se em instrumento de comunicação em que a liberdade de escolha e de ação possa talvez ser a dinâmica recorrente.


Atualmente, essa capacidade libertária parece enfraquecer-se diante dos variados mecanismos cautelares que o sistema implementa. Chaves de segurança são criadas, como já mencionamos, para trancar cadernos de recados, álbuns de fotografias, vídeos, depoimentos e outros espaços de registro identitário. Uma forte tendência de privatização do arquivo de dados configura o atual usuário. Torna-se raro vermos perfis francamente abertos, nos quais os usuários colocam suas constituições pessoais nessa grande “ágora” cibernética. As sub-redes estão se fechando cada vez mais e a espontaneidade coletiva é obrigada a dar lugar a estratégias cautelares que são predominantemente de ordem moral e pragmática.



CONCLUSÃO


Voltamos ao olhar de flânerie, exercitado por Baudelaire, e sistematizado por Benjamin frente à massificação da vida feita pelas cartografias sócio-político-culturais da modernidade. W. Benjamin, conta-nos sobre esse olhar desligado dos excessivos pragmatismos, quando anda por uma grande cidade européia:


Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas, que anos a fio eu evitara, tornou-se para mim, de um só lance, abarcável numa visão de conjunto, quando um dia uma pessoa amada se mudou para lá. Era como se em sua janela um projetor estivesse instalado e decompusesse a região com feixes de luz.

(2001, p.75).


Nossas cidades contemporâneas também estão recriadas na rede social do orkut e em outras redes sociais. Esse espaço cibernético reflete quase que simetricamente a realidade física na qual estamos inseridos. Há, pois, como no espaço da vida cotidiana, diretrizes de massificação e de alienação do sujeito. Nesses espaços existenciais também existem diretrizes que fomentam o esclarecimento e a liberdade para as subjetividades transformarem suas estruturalidades e funcionalidades que naturalmente deslocam-se de modo rizomático nos variados devires em que sãos feitas.


Um olhar de flânerie, seguido por uma postura analítica e crítica, permite-nos ver o complexo e intenso mundo criado pelo dispositivo do orkut, e redes afins. Com essa leitura caridosa, no sentido filosófico do termo, não demonizamos essa poderosa ferramenta de agenciamentos de enunciação subjetivo-social. Ao contrário, dimensionamos nossas heterogêneas cartografias subjetivas em um campo existencial cibernético capaz de funcionar como locus e meio para a efetivação de produtividade, de criatividade e de deslocamentos necessários que tornam o sujeito agente competente e consciente de sua própria ação.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENJAMIN, Walter. Ouvres III. Paris: Gallimard, 2000.

DELEUZE, Gilles. Mil Platôs. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.

_______. Mil Platôs. Vol. 3. Trad. deAurélio Guerra Netto et al. São Paulo: Ed. 34, 1996.

_______. Mil Platôs. Vol. 4. Trad. deSuely rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L'Anti-Oedipe: capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 2005.

GUATTARI, Félix. Da produção de Subjetividade. In: PARENTE, André (org). Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Ed. 34, 1993.

JAKOBSON, Roman. Linguagem e comunicação. São Paulo: Cultix, 1971.

LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 2001.

PARENTE, André (org). Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Ed. 34, 1993.

Wikipedia. Orkut. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut >. Acesso em 25 mai. 2009.


sábado, 19 de setembro de 2009

Sabedoria ancestral expressa em latim


1. A adoção imita a natureza. — Adoptio naturam imitatur.
2. Nada vem do nada — De nihilo nihil. (Lucrécio)
3. É difícil esquecer de repente um longo amor. — Difficile est longum subito deponere amorem.
4. Quando o pobre dá presente ao rico, parece armar-lhe redes. — Donat cum egenus diviti retia videtur tendere (Catulo).
5. Doce e honroso é morrer pela pátria. — Dulce et decorum est pro patria mori. (Horácio)
6. A afinidade não gera afinidade. — Affinitas affinitatem non generat.
7. A águia não caça moscas. — Aquila non captat muscas.
8. A arte está em esconder a arte. — Ars est celare artem.
9. A barba não faz o filósofo. — Barba non facit philosophum.
10. A boa árvore dá bons frutos. — Arbor bona fructus bonos facit.
11. A boa vontade supre a obra. — Aequiparat factum nobile velle bonum.
12. A boca fala do que está cheio o coração. — Ex abundanctia enim cordis os loquitur.
13. A boda ou a batizado não vás sem ser convidado. — Alterius festum solum invitatus adibis.
14. A boi velho não busques abrigo. — Aetatem habet, ipse sibi consulte expertus.
15. A caridade começa por casa. — A caridade começa por casa.
16. A cavalo dado não se olha o dente. — Equi donati dentes non inspiciuntur.
17. A César o que é de César. — Quae sunt Caesaris, Caesari.
18. A desgraça de uns é o bem de outros. — Lucrum unibus est alterius damnum.
19. A desgraça do pobre é querer imitar o rico. — Inops, potentem dum vult imitari, perit.
20. A desgraça vem ser chamada. — Mala ultro adsunt.
21. A Deus nada é impossível. — Nihil est quod Deus efficere non possit.
22. A exceção confirma a regra. — Exceptio regulam probat.
23. A experiência vale mais que a ciência. — Experientia praestantior arte.
24. A fama tem asas. — Fama volat.
25. A fortuna é como o vidro: — tanto brilha, como quebra. — Fortuna vitrea est: tum cum splendet, frangitur.
26. A hora é incerta, mas a morte é certa. — Morte nihil certius est, nihil vero incerta quam ejus hora.
27. A intenção é que faz a ação. — Voluntas pro facto reputatur.
28. A letra, com sangue, entra. — Litterae non entrant sine sanguine.
29. A maior pressa é o maior vagar. — Qui nimium properat serius absolvit.
30. A maior vingança é o desprezo. — Injuriarum remedium est oblivio.
31. A morte não poupa ninguém. — Mors omni aetate communis est.
32. A morte tudo nivela. — Omnia cinis aequat.
33. A necessidade é mestra. — Fames magistra.
34. A necessidade não tem lei. — Necessitas caret lege.
35. A ocasião faz o ladrão. — Occasio facit furem.
36. A palavras loucas, orelhas moucas. — Dementis convitia nihil facias.
37. A pergunta apressada, resposta demorada. — Quaerenti propere danda est responsio lenta.
38. A pressa é inimiga da perfeição. — Festinare docet.
39. A quem quer, nada é difícil. — Volenti nihil difficile.
40. A quem trabalha, Deus ajuda. — Industriam adjuvat Deus.
41. A sorte da guerra é incerta. — Anceps fortuna belli.
42. A sorte está lançada. — Alea jacta est.
43. A verdade dispensa enfeites. — Veritatis simplex oratio.
44. A verdade sai da boca das crianças. — Ex ore parvulorum veritas.
45. A vista do dono engorda o cavalo. — Oculus domini saginat equum.
46. A vitória ama a cautela. — Amat victoria curam.
47. Abuso não é uso, mas corruptela. — Abusus non est usus, sed corruptela.
48. Acaba-se o haver, fica o saber. — Sapientia longe preestat divitiis.
49. Aceita o que é teu e dá o alheio a seu dono. — Accipe quod tuum, alterique da suum.
50. Advogados nascem, juízes fazem-se. — Advocaci nascuntur, judices fiunt.
51. Agir, não falar. — Agere non loqui.
52. Água e pão, comida de cão. — Vilis aqua et panis, potus et esca canis.
53. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. —Gutta cavat lapidem, non vi sed saepe cadendo.
54. Alegação sem prova é como sino sem badalo. — Allegatio sine probatione veluti campana sine pistillo est.
55. Amigo certo conhece-se na hora incerta. — Amicus certus in re incerta cernitur.
56. Amigo certo, nas horas incertas. — Amicum certum in re incerta cerni.
57. Amigo de meu compadre, porém mais da verdade. — Amicus Plato, sed magis amica veritas.
58. Amigo de todos e de nenhum, tudo é um. — Qui servit communi servit nulli.
59. Amigo velho é parente. — Amicitia vera similis est consanguinitati proximiori.
60. Amigo, a que vieste? — Amici, ad qui venisti?
61. Amigos, amigos! negócios à parte! — Usque ad aras amicus.
62. Amigos, nem muitos, nem nenhum. — Amandi, nec multi, nec nulli.
63. Amor com amor se paga. — Amor amore compensatur.
64. Amor com amor se paga. — Amor amore compensatur.
65. Amor de asno entra a coices e dentadas. — Dentes atque pedes asinini exordia amoris.
66. Amor e senhoria não quer companhia. — Amor et potestas impatiens consortis.
67. Amor faz muito, mas dinheiro faz tudo. — Plurima praestat amor, sed sacra pecunia cuncta.
68. Amor primeiro não tem companheiro. — Primus amor potior.
69. Andando de dois, se encurta o caminho. — Comes facundus in via pro vehiculo est.
70. Anel de ouro não é para focinho de porco. — Anulus aureus in nare suilla.
71. Antes burro que me leve que cavalo que me derrube. — Malo tutus humi repere quam ruere.
72. Antes calar que com doidos altercar. — Dementis convitia nihil facias.
73. Antes da morte, não louves a ninguém. — Ante mortem ne laudes hominem quemquam.
74. Antes de entrar, pensar na saída. — Res ab exitu spectanda et dirigenda est.
75. Antes de mais que de menos. — Melius est abundare quam deficere.
76. Antes de matar a onça, não se faz negócio com o couro. — Priusquam mactaveris, excorias.
77. Antes invejado que lastimado. — Praestat invidiosum esse quam miserabilem.
78. Antes pobre sossegado que rico atrapalhado. — Liber inops servo divite felicior.
79. Antes que conheças, não louves nem ofendas. — Antequam noveris, a laudando et vituperando abstine.
80. Antes só do que mal acompanhado. — Fecit iter longum, comitem qui liquit ineptum.
81. Antes sofrer injúria, que praticá-la. — Accipere, quam facere, praestat injuria.
82. Antes sofrer o mal que fazê-lo. — Accipere quam facere praetat injuriam.
83. Antes tarde do que nunca. — Utilius tarde quam nunquam.
84. Antes torcer que quebrar. — Flectere commodius validas quam frangere vires.
85. Ao avarento falta o que não tem e falta o que tem. — Tam desunt avido sua quam quod non habet.
86. Ao homem ousado, afortuna estende a mão. — Audaces fortuna juvat, timidosque repellit.
87. Ao médico, ao advogado e ao abade, falar a verdade. — Abbati, medico, patronoque intima pande.
88. Ao padre, médico e advogado, falar a verdade. — Abbati, medico, potronoque intima pande.
89. Ao que está feito, remédio; ao por fazer, conselho. — Consilium faciendo, facto adhibeto medelam.
90. Ao vivo tudo falta, e ao morto tudo sobra. — Morienti cuncta supersunt.
91. Aprende chorando e rirás ganhando. — Litterarum radices amarae, fructus dulces.
92. Aquele a quem se dá, o escreve sobre a areia; aquele a quem se tira, o escreve sobre o bronze. — In vento scribit laedens; in marmore laesus.
93. Aqui é que está o busílis. — Hoc opus, hic labor est.
94. Arca aberta, o justo peca. — Oblata occasione, vel justus perit.
95. Arrenego de grilhões, ainda que sejam de ouro. — Non bene pro toto libertas venditur auro.
96. Arrenego do amigo que come o meu comigo e o seu consigo. — Absit qui mea manducat mecum et sua secum.
97. Arrufos de namorados são amores renovados. — Amantium ira redintegratio amoris est.
98. As aparências enganam. — Fallitur visio.
99. As boas palavras custam pouco e valem muito. — Verba mollia et efficacia.
100. Asno que tem fome, cardos come. — Jejunus stomachus





domingo, 17 de maio de 2009




PRÓSPERO — Pareceis, caro filho, um tanto inquieto, como quem sente medo. Criai ânimo, senhor; nossos festejos terminaram. Como vos preveni, eram espíritos todos esses atores; dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. E tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono. Reconheço, senhor, que estou irritado. Suportai-me, vos peço; é da fraqueza. Enturva-se-me o cérebro já velho. Não vos amofineis com minha doença. Caso vos for do agrado, entrai na cela, para aí repousardes. Enquanto isso, darei algumas voltas, porque possa tornar-me calmo.

[uma das básicas falas de Próspero, protagonista da peça A última tempestade, de William Sheakespeare]

Do peso e da leveza: sobre a velhice






Acrescentar liberdade de ação à desigualdade fundamental da condição social, impondo o dever da liberdade sem os recursos que permitem uma escolha verdadeiramente livre é, numa sociedade altamente hierarquizada como a brasileira, uma receita para uma vida sem dignidade, repleta de humilhação e autodepreciação (Guita Grin Debert. O Idoso na Mídia. Revista Com Ciência).

Exploraremos, nesse artigo, alguns aspectos sobre a leveza e o peso da existência, qualidades presentes de modo simultâneo, em uma fase de desenvolvimento da vida humana, que é a velhice. Com o número de pessoas idosas aumentando consideravelmente, tanto nos países avançados como naqueles em desenvolvimento, políticas governamentais e não-governamentais são elaboradas e implementadas no sentido de se encontrar um equilíbrio intergeracional para o bem-estar coletivo.

Nesse meio, o que pensamos sobre a velhice, aparados pelos discursos do senso comum, da Gerontologia e da Geriatria, caminha por dois pólos de representação: o pólo da pessoa idosa como sujeito a ser amparado em suas deficiências psicofísicas ou, então, o pólo da pessoa idosa que é capaz de, individualmente, resolver as suas necessidades cotidianas.

Para iniciar nossa abordagem do tema velhice, surge-nos à mente uma das histórias da Mitologia Grega, que nos conta os feitos do herói Perseu. Herói oportuno, pois nos dá um exemplo de como jovem pode relacionar-se com a velhice para conseguir atingir seus feitos gloriosos, com a finalidade de ser alçado a um lugar de honra no mundo olímpico. Sabemos que o jovem Perseu é respeitado por seus pares por ter conseguido decepar a cabeça de uma das Górgonas, a poderosa Medusa, sem ser transformado em estátua e neutralizando, depois dessa conquista, seus potenciais inimigos com essa força prodigiosa, pois todos que olhassem diretamente para os olhos de Medusa, mesmo depois do monstro morto, eram imediatamente petrificados.

Perseu, para conseguir esse feito inaudito, deveria chegar ao lugar habitado pelas Górgonas, passando pelas Graias, protetoras. Essas entidades, as Graias, são divindades que já nasceram velhas e guardam os fatos passados, presentes e futuros, tanto os dos homens quanto os dos deuses. Apesar de sua força primitiva, as Graias são ludibriadas por Perseu e obrigadas a darem o roteiro para o lugar pretendido; contam ao rapaz o percurso para se atingir a região de Medusa. Com outros subterfúgios, o jovem chega ao lugar e ardilosamente consegue seu troféu.

Interessa-nos de perto, mais do que os feitos do mundo antigo, como a velhice já é representada no mundo helênico e como seus ecos ainda batem forte aos nossos ouvidos contemporâneos. As Graias, são três senhoras, numa mistura de características humanas e animais, que têm a particularidade de já terem nascido velhas e ficarem disputando entre si um único olho e um único dente. Daí, seu caráter de vigilantes, já que podem ver, quando uma delas fica com a posse do olho, e falar, quando um delas fica com a posse do dente, com grande clarividência dos segredos do mundo subterrâneo e do mundo da superfície, como nos fala Jonh Bart (1986).

O mito nos oferece uma peculiar relação entre a juventude, em fase de afirmação, e a velhice, já estabelecida em sua autoridade de validar caminhos e práticas de ação tidos como produtivos para o bem estar da coletividade. Poderíamos falar que ele aborda, dentre outras riquezas sócio-culturais, os constantes confrontos entre as faixas etárias, principalmente no que diz respeito à juventude e ao mundo adulto que se colocam frente a frente com a dimensão da velhice.

Leveza e peso são evocados pelo mito. Leveza da juventude em sua confiança cega nas suas próprias forças e em seus arroubos perante a irremediável linha do progresso; peso na falta de meios para se atingir tal progresso. Leveza da velhice por deter os conhecimentos do saber-agir para enfrentar e solucionar as situações de perigo; peso da velhice na quase necessidade de ser enganada para que o jovem atinja seu lugar no meio dos demais adultos.

Como Perseu sai-se desse confronto? Vitorioso, casa-se com Andrômeda, tem seus filhos e governa seu reino. No entanto, as Graias não o perdoam; ao contrário, parecem cobrar o preço de ajudarem, pelo estratagema do engodo, o jovem herói a encontrar a fama. Perseu, com o passar do tempo, vai transformando-se no homem de vida sedentária, barrigudo, sem aventuras instigantes e sua vida insossa caminha-se para a velhice. Os deuses, porém, como que se apiedando de tal destino, transformam-no, e aos entes mais próximos, em estrelas. Perseu é eternizado, petrificado pelo processo de museificação da memória helênica. Leveza da vida, pois, transformada em peso de um saber-viver memorialístico que, talvez, esperaria um novo jovem herói para expropriar seu arquivo repleto de tecnologia para se enfrentar perigos de várias ordens.

Do mito passamos às nossas cotidianas relações sociais, no que elas podem nos ensinar a respeito das relações entre o mundo do homem, em fase de produção convencional, e o homem na idade da velhice. Uma dialética entre a leveza e o peso também aí pode ser seguida, sendo que por muitas vezes, o espírito do peso parece delinear os resultados de tal encontro. O mundo do adulto, em fase de produção, não sabe o que fazer com a pessoa idosa ainda viva. Mesmo que esse mundo conheça e use os valores positivos de seus velhos, esses mesmos velhos, antes de tornarem-se estrelas da constelação de nossas mitologias familiares e sociais, são configurados, predominantemente, pela representação de subjetividades impregnadas por uma concentrada e repugnante carga de peso para si mesmos e para seus contemporâneos.

Nessa fase de excesso de peso que atinge um estrato populacional específico, mas que reflete a qualidade negativa na coletividade, vemos os poderes institucionalizados, governamentais e não-governamentais, internacionais, nacionais, estaduais e municipais, se organizarem para colocar o tema em pauta.

A ONU – Organização das Nações Unidas – na II Assembléia Mundial do Envelhecimento, de 8 a 12 de abril de 2002, em Madri, continuou suas tentativas de unificação global de políticas de ação social para assegurar condições de melhoria de vida para esse contingente populacional, o da pessoa idosa. Nesse encontro internacional, foi formulado o documento intitulado Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento, disponibilizado no Brasil pelo Conselho Nacional dos Direitos do Idoso e pela Secretaria Especial dos Diretos Humanos da Presidência da República.

Para esse documento, o segmento populacional da velhice está tendo, e ainda terá, um aumento sem precedentes na história. Pelas palavras do Secretário Geral da ONU, Sr. Kofi Annan (2003: p. 13), hoje temos razões fundamentais e imperiosas para voltar a refletir sobre a questão. O mundo está passando por uma transformação demográfica sem precedentes. Até 2050, o número de idosos aumentará em aproximadamente de 600 milhões a quase 2 bilhões. No decorrer dos próximos 50 anos haverá no mundo, pela primeira vez na história, mais pessoas acima de 60 anos que menores de 15.

Universaliza-se, pois, a percepção de novas relações sociais frente ao novo fenômeno e, conseqüentemente, novas necessidades vão tomando a pauta das instituições civis e governamentais, responsáveis pelo bem-estar social. E percebemos que uma das diretrizes, presente no pensamento gerontológico contemporâneo, que baseia a junção dos esforços institucionais, é a de diminuir a incapacidade psicofisiológica do sujeito com mais de sessenta anos.

Tal direção vem substituindo aquela convencional crença de que a pessoa idosa estava condicionada à exclusão do mercado tradicional de trabalho, bem como das demais relações sociais e, conseqüentemente, deveria ser alienada da vida social por algum poder institucional. É o que se convencionou chamar, na jargonística da Gerontologia, de “o idoso como fonte de miséria” que contrapõe ao que hoje se implementa como a política do “idoso como fonte de privilégio”.

O quadro de subvalorização do perfil do idoso, apesar das suas limitações em valorizar as potencialidades da pessoa em condição de exclusão, foi um dos primeiros avanços no terreno das teorizações e práticas a respeito da velhice. Apesar de ainda termos ações sociais nessa linha de compreensão, vemos surgir características de uma segunda disposição da representação da constituição e do papel do idoso na nossa sociedade, a da velhice competente, como já mencionamos.

Essa segunda configuração do papel da velhice pretende apresentar o idoso como pessoa ainda apta a agir com capacidades semelhantes ao do adulto. Dessa forma, os programas sociais pretendem reeducá-la para agir como pessoa independente e auto-suficiente, capaz de ainda fazer parte do mercado de trabalho a sua volta.

Aparentemente, quando vemos o idoso tornar-se responsável por si mesmo, parece-nos um acontecimento positivo, pois pensamos ver o surgimento do equilíbrio intergeracional que acabaria com uma carga de esforços tidos como extra para as diversas instituições. No entanto, sabemos que o exagero das representações gratificantes da velhice acaba por criar tantos problemas quanto a idéia de que tal fase da vida é feita apenas por uma condição miserável, tanto em seu nível mental quanto em seu nível físico.

Saímos de um estereótipo da velhice e caímos em outro estereótipo, sem que a questão seja resolvida ou, em hipótese pessimista, teríamos a situação do idoso mais problemática.

O Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento, texto que começamos a explorar atrás, esforça-se por balancear suas ações entre os dois pólos que vimos acima. As ações governamentais e não-governamentais que asseguram um desenvolvimento pleno do ser humano, com ênfase em sua fase de velhice, são inseridas em diretrizes e temas que visam a consecução de objetivos bem definidos. Os temas, firmados entre os países participantes, foram englobados no que se convencionou chamar de orientações prioritárias, em número de três: a primeira diz respeito a pessoas idosas e ao desenvolvimento; a segunda, preocupa-se com a promoção da saúde e bem-estar da velhice; a terceira, fomenta a criação de ambiente propício e favorável ao envelhecimento e à pessoa idosa.

A terceira orientação prioritária, dentre outros tópicos e objetivos, traz o tema que diz respeito às imagens do envelhecimento, que objetiva o maior reconhecimento público da autoridade, sabedoria, produtividade, dentre outras contribuições importantes dos idosos. Acreditamos que, nesse tema, está inserido o espírito de nosso artigo, já que estamos acompanhando possibilidades de se perceber a velhice relacionada com outras faixas etárias.

De modo sumário, como mencionamos de início, demonstramos como a questão do envelhecimento e da velhice vem sendo institucionalizada por um organismo internacional e dirigindo as políticas particulares de cada país. Dessa forma, uma orientação integrada, sobre ações a serem implementadas, espraia-se do nível internacional para os níveis federais, estaduais, municipais e não-governamentais. Se levarmos em conta as diferenças de cada povo, de cada cultura, no trato com a pessoa idosa, temos no nível mundial um consenso em juntar esforços para procurarmos a leveza da vida em uma fase que parece ser completamente dominada pelo peso da falência da vida.

Do sumário das diretrizes prioritárias que a ONU nos apresenta, interessa-nos, mais de perto, a preocupação que a ação internacional denominou por imagens do envelhecimento. Isso significa que “uma imagem positiva do envelhecimento é um aspecto essencial do Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento, 2002” (ONU, p. 72-73).

A saúde e o gozo pleno das capacidades psicofísicas são, de fato, muito importantes para a pessoa idosa. No entanto, o custo disso (a concentração da assistência pública, o custo com serviços de assistência à saúde, as pensões e outros serviços) funciona como estímulo para que a população, de produtividade convencional, produza e promova uma série de imagens negativas do envelhecimento e da velhice. Assim, as imagens que destacariam o atrativo, a diversidade e a criatividade dos idosos e sua contribuição vital para a sociedade, devem competir com as imagens negativas para despertar a atenção dos demais estratos etários da sociedade.

Nossa sociedade midiática, além de nossa literatura erudita ou popular, fazem-nos engolir, constantemente, imagens distorcidas sobre o processo do envelhecimento e, conseqüentemente, da velhice. Pelos veículos de comunicação, a pessoa idosa só adquire valor positivo quando nos pode auxiliar de modo pragmático, ou seja, de forma pontual e sem compromisso de contrapartida. Auxílio conquistado, a pessoa velha é descartada e encaminhada para situação semelhante àquela de museificação, que abordamos no início desse artigo, quando abordamos a condição final do herói Perseu. Leveza da vida que deveria destruir o peso da morte. Porém, mais uma vez o maniqueísmo mostra-se estéril e não é capaz de nos colocar frente às verdadeiras feridas de nossas fábricas de imagens estereotipadas.

Simone Beauvoir (1990), em seu básico ensaio sobre a velhice, conta-nos uma das histórias de Buda, que pode enriquecer nossas reflexões. É a seguinte: Quando Buda era ainda o príncipe Sidarta, encerrado por seu pai num magnífico palácio, dele escapuliu várias vezes para passear de carruagem nas redondezas, Na primeira saída, encontrou um homem enfermo, desdentado, todo enrugado, encanecido, curvado, apoiado numa bengala, titubeante e trêmulo. Espantou-se, e o cocheiro lhe explicou o que era um velho: “Que tristeza – exclamou o príncipe – que os seres fracos e ignorantes, embriagados pelo orgulho próprio da juventude, não vejam a velhice! Voltemos rápido para casa. De que servem os jogos e as alegrias, se eu sou a morada da futura velhice?”

Ser a morada da velhice é um dos vislumbres que o jovem Buda tem das verdades mais profundas. Nesse quadro não se pode agir como Perseu diante das Graias, num aparente confronto natural entre as várias gerações, no qual a velhice sempre dever ser ludibriada para que o herói receba sua coroa de louros. Enganosa vitória seria essa, já que o peso da petrificação, outrora protegido pelas velhas senhoras, é elemento inerente do rapaz que, com todos os seus ardis, pensa em dele fugir pela ilusória leveza conferida pela posse de poderes que se tornam, assim que usados, falíveis.

O jovem e o adulto, que conhecem a velhice dentro de si mesmos, estariam mais preparados para receber, de modo crítico e produtivo, as imagem negativas do envelhecimento e da velhice que lhes são oferecidas. Assim, o recolhimento à casa, semelhante ao do jovem Buda, serviria para o ajuntamento de esforços que assegurasse um reconhecimento público da autoridade, sabedoria, produtividade e outras contribuições importantes que vêm da velhice.

Nesse sentindo, o de percebermos a velhice como uma característica inerente a nossa constituição, vemos a urgência de seguirmos a orientação prioritária da ONU quanto a este tema: há a necessidade de implementarmos, em nosso meio social, medidas que elaborem e promovam amplamente um marco normativo, onde haja responsabilidade individual e coletiva de reconhecer as contribuições passadas e presentes dos idosos, procurando resistir a mitos e idéias pré-concebidas e, conseqüentemente, tratar os idosos com respeito e gratidão, dignidade e consideração.

Devemos estimular, como espectadores críticos e ativos, os meios de comunicação de massa a promoverem imagens que destaquem a sabedoria, os pontos fortes, as contribuições, o valor e a criatividade de mulheres e de homens idosos, inclusive daqueles idosos com incapacidades.

Que se proliferem as portas abertas, proporcionadas pelas universidades, faculdades e escolas, para o estímulo de educadores que reconheçam e incorporem, em seus cursos, as contribuições feitas por pessoas de todas as idades, inclusive as idosas. Este estímulo funcionará para que o educando perceba e tenha ilustrada, em sua vida sócio-cultural, a diversidade plena da humanidade.

Sem dúvida, a mídia tem forte papel a desempenhar na implementação de novas imagens do envelhecimento e da velhice. É necessário, pois, reconhecer que tais meios de comunicação são precursores da mudança e podem atuar como fatores de orientação na promoção do papel que toca aos idosos nas estratégicas de desenvolvimento, inclusive nas zonas rurais. Além disso, salienta-se a necessidade de novos espaços, que esses meios de comunicação poderiam abrir, para a pessoa idosa apresentar suas atividades e preocupações cotidianas.

Poderíamos publicar compêndios com ações que, efetivamente, equilibrariam a questão do peso e da leveza no âmbito da velhice e do envelhecimento. Porém, acreditamos que o discurso gerontológico, ou outros afins, consegue, hoje, aproximar-se, com aparelhagens refinadas e competentes, do fenômeno em questão. Profissionais, de várias áreas do conhecimento, juntam-se para se especializarem no assunto, e governos e órgãos não-governamentais já encaram, sem tantos maquiavelismos, o encontro entre gerações que outrora, em nossa cultura ocidental, marcavam presença em beligerantes confrontos. Assim, pensamos que se relativiza a distância entre o peso e a leveza, entre o meu ser produtivo e bem localizado socialmente, de hoje, com a velhice que me habita e, brevemente, tomará seu centro. Perseu, talvez, poderá, em um futuro próximo, convidar as Graias para um espontâneo, desinteressado e alegre vôo pelo mundo dos homens.

Um percurso da sensibilidade artística em "No Caminho de Swann", de Marcel Proust


A narrativa No Caminho de Swann, de Marcel Proust, abre a grande aventura literária que é a obra Em busca do tempo perdido. Junto a outros seis volumes contínuos, esta narrativa estrutura-se como uma sinfonia, em que no primeiro movimento somos apresentados aos principais temas que serão minuciosamente desenvolvidos nos demais volumes seguintes.


O narrador-protagonista, no primeiro volume desse exercício estético e memorialista, encontra-se na fase adulta e imerge na recordação de sua infância e adolescência vividas na pequena vila de Combray. Experiências de vida intensas são envoltas pelas relações familiares com seus pais, avós, tia-avós e a comunidade de uma cidadezinha que funciona como contraponto para a agitada Paris do final do séc. XIX. O pequeno Marcel nos expressará seu amor por sua mãe e as investidas de seu pai para que ele assumisse um comportamento adulto, ao mesmo tempo em que seremos também apresentados ao seu universo de formação artística.


Em um segundo momento, seremos levados à vida de Swann, um dos vizinhos e amigos da família, em suas investidas amorosas, em suas relações conturbadas na aristocrática sociedade parisiense e, mais importante para nossos interesses, ao seu comportamento diante das práticas e interesses artísticos de seu meio e época. Interessa-nos de perto o primeiro momento da narrativa proustiana, aquele que diz respeito a como o pequeno Marcel entra em contato com o mundo artístico, com a pintura, a escultura, a música, a arquitetura e, em especial, com a literatura e as concepções de arte advindas desse processo.


Em Combray, é peculiar e exemplar o convívio que Marcel tem com sua avó materna, pessoa de apurada sensibilidade para com a vida e para com o mundo cultural, situação essa que influenciará o pequeno garoto durante toda sua vida. Deste contato, vemos surgir as idéias sobre o fenômeno artístico que mais tarde, nos volumes subseqüentes, serão desenvolvidas de modo mais sistemático. Nesse primeiro momento, os pensamentos do garoto estarão envoltos ainda por aquelas sensações, sentimentos e surpresas típicos dessa fase de descoberta e de formação.


Um dos primeiros pontos da percepção e de compreensão infantil e juvenil de Marcel vem da prática que a avó materna tinha ao presentear as pessoas. Sua exigência salutar era a de que o presente tivesse um valor estético. Nada de utilitarismos poderia comprometer o que era comprado e oferecido, mesmo que isso dificultasse a vida das pessoas que recebiam tais presentes. Vejamos como este comportamento peculiar, pois acontecia em uma época na qual a produção em série já invadia o campo do artefacto artístico e já se fazia sentir o que, mais a frente, viria a se chamar de contexto de indústria cultural, causava na impressão do neto de índole bastante observadora. A passagem é um tanto longa, mas merece ser destacada em sua extensão natural, pois trata de uma lembrança que influenciará o comportamento do artista em formação:

Na verdade, jamais se resignava [ a avó materna ] a comprar qualquer objeto de que não se pudesse tirar algum proveito intelectual e sobretudo o que nos proporcionam as coisas belas, ensinando-nos a buscar deleite em outra parte que não nas satisfações do bem estar e da vaidade. Até quando tinha de fazer algum presente chamado útil, quando tinha de dar uma poltrona, um serviço de mesa, uma bengala, procurava-os ‘antigos’, como se, havendo seu longo desuso apagado em tais coisas o caráter de utilidade, parecessem antes destinadas a contar a vida dos homens de outrora que a atender às necessidades de nossa vida atual. Gostaria que eu tivesse no quarto fotografias dos mais belos monumentos ou paisagens. Mas, no momento de fazer a compra, e embora a coisa representada tivesse um valor estético, achava ela que a vulgaridade, a utilidade, logo reassumiriam seu lugar, pelo processo mecânico de representação, a fotografia. Procurava então um subterfúgio, tentando, senão eliminar de todo a vulgaridade comercial, pelo menos atenuá-la, substituí-la o mais possível pelo que ainda fosse arte, introduzir-lhe como que várias ‘espessuras’ de arte: em vez de fotografias da catedral de Chartres, das fontes de Saint-Cloud, do Vesúvio, informava-se com Swann se algum grande mestre não os havia pintado, e preferia dar-me fotografias da catedral de Chartres por Corot, das fontes de Saint-Cloud por Hubert Robert, do Vesúvio por Turner, o que constituía um grau de arte a mais (PROUST: 1993, p. 44-45).


O narrador-protagonista assegura-nos, seguindo a apresentação dos hábitos da velha senhora, que o fotógrafo, no caso exemplificado, era redimido se aproximasse de uma representação estética do refencial, afastando-se, pois do fenômeno empírico que traria uma condição de inferioridade e de vulgaridade ao que era representado. Em várias circunstâncias, esse hábito ocasionara dissabores no dia-a-dia, como o exemplo do caso no qual Marcel conhecera Veneza através de um desenho que o pintor Ticiano havia feito e que, como é de se esperar de um grande artista, não possuía muitos vínculos com a realidade sentida e expressada.


Caso semelhante repete-se quando acompanhamos a bondosa senhora presentear uma poltrona a um jovem casalzinho, criando uma situação quase cômica, se a natureza idealizadora de sua crença na estética não nos fizesse ficar sérios para refletirmos sobre a delicadeza do gesto. Marcel assim nos diz sobre a situação:

[...] as poltronas oferecidas por ela a um parzinho recente ou a velhos casais e que, à primeira tentativa para se servirem delas, logo desabavam sob o peso de algum dos destinatários. Mas minha avó teria julgado mesquinho preocupar-se muito com a solidez de um móvel onde ainda se distinguiam uma flor, um sorriso, às vezes uma bela imaginação do passado. Até aquilo que nesses móveis correspondia a uma necessidade, como se apresentasse de uma feição a que estávamos desabituados, a encantava como esses antigos modos de dizer em que descobrimos uma metáfora, apagada, em nossa linguagem atual, pelo desgaste do hábito (idem, p. 45).


O narrador-protagonista segue lembrando-se de que também ao presentear com um livro, como os de George Sand que a avó lhe dava, ela os escolhia, de preferência aos outros, porque eles traziam um modo de vida, um linguajar campestre e “cheio de expressão em desuso, convertidas em imagens, e que não se encontravam mais senão no campo” (idem, p. 45). Estas características teriam a função de trazer uma felicidade ao espírito de quem recebia tais obras e criavam uma sensação como que de impossíveis viagens ao tempo, como o narrador constata.


O comportamento da avó, considerado como que excêntrico pelos hábitos europeus do século vinte, além de ser um indicativo de como o garoto tem sua sensibilidade estética educada, serve também de ponto de comparação com aquilo que alguns estetas costumam discutir. Através dessa sensível e exemplar situação criada por Proust, percebemos como o artista realmente é uma antena de sua raça e de sua época, como nos diria Ezra Pound.


Um dos pontos de valoração, do programa estético assistemático da avó do protagonista, envolveria o que se denomina de aura de uma obra de arte. E sobre este assunto, retomamos as clássicas reflexões de Walter Benjamin que disseca sua época, final do séc. XIX e início do séc. XX, no que diz respeito à produção artística, bem como a sua recepção.


Benjamim, em seu ensaio intitulado L‘oeuvre d’art à l’ère de sa reproductibilité technique (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica), coloca-se frente à produção da fotografia e do cinema, entre outras artes de necessária e rotineira reprodução em série, para discutir o papel da obra de arte de uma época em que a indústria cultural massifica o produto artístico. A prática da multiplicação poderosa de objetivos artísticos dissolveria a alma da obra de arte. Sobre a alma, vista como aura pelo pensador da Escola de Frankfurt, teríamos que se trata de:

une singulière trame d’espace et de temps: l’unique apparition d’un lointain, si proche soit-il. Suivre du regard, un après-midi d’eté, la ligne d’une chaîne de montagne à l’horizon ou une brance qui jette son ombre sur lui, c’est, pour l’homme qui repose, respirer l’aura de ces montagnes ou de cette branche. Cette définition permet d’aperceboir aisément les conditionnements sociaux auxquels est dû le decline actuel de l’aura. Il tient à deux circonstances, étroitement croissants des mouvements de masses (BENJAMIN, 2000, p. 74).

Para Benjamin, com um apuro poético e romântico em sua definição, a aparição única de uma coisa distante acabaria por ser destruída por duas circunstâncias que seriam advindas do fato de tais coisas serem ansiosamente desejadas e, por conseqüência, ficarem mais próximas para a sociedade de massa. A ânsia de possuir o objeto artístico, ou similar, em uma proximidade irredutível, abre caminhos para a necessidade crescente de reprodução, de cópia do que seria a obra original e única.


Há, em nossa cultura, uma necessidade fetichista de possuir o objeto artístico, ou qualquer objeto semelhante que esteja exposto em alguma vitrine. Desta forma, unidade e durabilidade dão lugar à transitoriedade e à repetibilidade. Aconteceria, nesta dinâmica, a destruição do que seria a aura da obra de arte. Como se tivesse lido a passagem de Proust que aqui destacamos, Benjamin concluirá que: “Sortir de son halo l’objet, détruire son aura, c’est la marque d’une perception dont le ‘sens de l identique dans le monde’s’est aiguisé au point que, moyennant la reproduction, elle parvient à standardiser l’unique” (BENJAMIN: 2000, p. 76).


O caráter de unicidade de uma obra seria a sua colocação na esfera da tradição que valoriza ideais e sentidos estabelecidos por um consenso de recepção por parte de um público educado e sofisticado, que são úteis para a continuação de um determinado padrão de vida e repertório de valores. Dessa forma, a flor, o sorriso, a bela imaginação do passado que a avó do pequeno Marcel via na poltrona que presenteava, são características que funcionam como o resgate da aura de um móvel que guarda em si padrões de vida que se valorizam como positivos, e que de tal móvel estetizado deveríamos manter uma distância respeitosa, devido a sua importância passada, e de tal respeito surgiria a fruição pela idéia de que a sensação da lembrança ocasiona a terna felicidade das coisas que alimentam a vida.


Não há dúvidas de que o ideal de aura proposto por Benjamin seja carregado de um posicionamento romântico que deseja assegurar a recepção de um fenômeno artístico por determinada época. Época ideal porque percebe a vida cultural de uma época também considerada ideal. Poderíamos pensar que haveria certa aversão por sentidos que são feitos diacronicamente, sentidos que são feitos por heterogêneos e evolutivos horizontes de expectativas, como nos ensinam os postulados de uma teoria como a da Estética da Recepção. No entanto, a avó do pequeno Marcel e a Escola de Frankfurt parece ter razão em nos avisar sobre os perigos causados por uma desmedida de utilitarismo, de proximidade e de uso descartável que criam uma condição desfavorável a uma compreensão mais crítica e produtiva dos fenômenos artísticos.


Ao lado destas lembranças que dizem respeito ao desenvolvimento de uma sensibilidade via núcleo familiar, podemos acompanhar Marcel vasculhando o que a idílica Combray poderia lhe oferecer de material de percepção e de emoções estéticas. Em seus passeios, descortina-lhe aos olhos ansiosos velhas igrejas com suas arquiteturas seculares, campanários que se erguem e de onde se avista toda a região da vila, tapeçarias que narram sagas antigas, vitrais por onde luzes variadas permitem a substantivação de nuances de cores e formas, músicas feitas por algum vizinho que, inevitavelmente ficarão relegadas ao esquecimento, ruínas de castelos por onde caminharam princesas e cavalheiros franceses, leituras de romances em um jardim similar ao de conto de fadas; enfim, belezas feitas pela criatividade e sensibilidade do homem, ao lado das típicas belezas naturais do lugar, que ainda não foram massificadas pela incessante movimentação fabril e febril da grande cidade.


São várias as ocasiões em que vemos o narrador-protagonista imerso nessas apreciações de uma arte que ainda teima em manter sua aura. É constante a preocupação de Marcel em receber o fato artístico em sua unicidade e durabilidade, como podemos acompanhar no fragmento que nos mostra um dos vários passeios que a família do garoto fazia pela vila, nos quais se contemplava, nesse caso, a arquitetura de uma tradicional igreja:

Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário. Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com esta justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorregado (PROUST, 1993, p. 66-67).


A tradição sócio-cultural é assegurada pelo respeito considerado ao monumento, situação esta que a avó transmite ao neto e que este perpetua em sua escrita criadora e mantenedora de uma época que já não é integralmente a época do narrador-protagonista que, no ato da escritura, encontra-se no mundo adulto e localizado em uma grande metrópole européia. A singularidade do campanário realmente evoca um passado que se deve perpetuar para assegurar a continuação de uma modalidade de vida desejada e que ainda insiste em viver tocada pelas cordas do coração, com as qualidades da naturalidade e da distinção. E Marcel continua:

Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considera pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção (PROUST: 1993, p. 67).


Mesmo que a avó não dispusesse de uma educação formal, sua intuição a levava a acreditar que os grandes e verdadeiros monumentos, assim como a mais ingênua expressão de cultivo de flores, representavam algo de valioso em sua vida, a ponto de representar a integridade desta vida.


O campanário marcava o ritmo da vida da pequena cidade, no entanto quando o narrador faz o relato de como o monumento o tocava, bem como a sua família, não são as características de utilidade as colocadas em relevo. Ressalta-se o valor da tradição que repousa sobre a obra e o palimpsesto de valores que ele adquiriu desde a sua concepção até o último olhar do sujeito que devaneia depositou sobre ele. Mais do que um padrão de ordenação da vida da cidade, o campanário funciona como um repositório dos olhares e atenção flutuante ou tensa das pessoas atingidas por ele.


Marcel confessa, em seguida, que mesmo diante de fatos arquitetônicos mais vistosos e consagrados pela fama internacional, é do campanário de Santo Hilário que ele se lembrará mais e sentir-se-á sensibilizado pelas significações e fruições que tal obra ocasionou e continua a ocasionar em sua vida. O adulto relata que, após numerosas viagens e infindáveis visões de igrejas e de campanários, nada se equipara àquele que está encerrado em seu coração e pode emergir na consciência através da memória. Desta forma, sabemos que as lições da avó foram apreendidas e eternizadas, no sentido de se respeitar e de se assegurar a aura de uma obra de arte. Delicada e nostálgica é a afirmação do adulto, já escritor, nessa retomada de algo que lhe age ainda na alma:

Mas como a memória, por mais gosto com que as executasse, não conseguisse pôr nessas pequenas gravuras [ou as viagens e recepções feitas] o que eu de há muito havia perdido, isto é, o sentimento que nos induz, não a considerar uma coisa como um espetáculo, mas a tê-la como um ser sem equivalente, nenhuma delas domina toda uma parte profunda de minha vida como a lembrança daqueles aspetos do campanário de Combray nas ruas que ficam atrás da igreja (PROUST: 1993, p. 69).


Ao lado da contribuição da avó materna para a formação da sensibilidade artística de Marcel, encontramos o convívio com Bloch, o colega judeu que comunga da mesma avaliação sobre uma das obras que mais toca o adolescente. Trata-se da obra do escritor Bergotte que, em um primeiro momento é percebida em sua dimensão fabular, para em seguida o sensibilizar no plano do discurso, da disposição fabular através da linguagem.


A obra lembra a circunstância de um trecho musical que arrebata o ouvinte, apesar de no início, a consciência não compreender o porquê do arrebatamento. O protagonista transforma-se em um ávido leitor que compara a leitura a um ato de amor que se no começo funciona de modo intuitivo, no seu desdobramento traz uma reflexão sobre o valor da dignidade, da unicidade e do valor tradicional. Após a sensação da fruição sobrevém o campo da reflexão, no qual ficamos sabendo sobre as preocupações em relação ao fazer artístico:


Depois notei as expressões raras, quase arcaicas, que gostava de empregar em certos momentos em que uma onda oculta de harmonia, um prelúdio interior, agitava-lhe o estilo; e era também nesses momentos que ele se punha a falar do ‘sonho vão da vida’, da ‘inesgotável torrente das belas aparências’, do ‘tormento estéril e delicioso de compreender e de amar’, das ‘comoventes efígies que enobrecem para sempre a fachada venerável e encantadora das catedrais’, quando expressava toda uma filosofia nova para mim, com maravilhosas imagens, que pareciam ter elas próprias despertado aquele canto de harpas que então se elevava e a cujo acompanhamento emprestavam qualquer coisa de sublime (PROUST: 1993, p. 95-96).


As alegrias advindas dessa leitura da obra de Bergotte atingiam o âmago de Marcel. De todos os livros se se pudesse reter uma fórmula de uso discursivo, tal uso traria uma espessura e um volume que ampliariam o espírito do leitor adolescente. Ao objeto artístico, vemos a envoltura do sublime que, como comentamos antes, poderia ser traduzido pela nobreza, unicidade e valor digno procurado pela avó do garoto e sistematizado nas reflexões estéticas de Walter Benjamin.


O olhar do narrador, porém, já se desloca para um espaço além da fruição, aquele espaço em que se observa a tecnologia da composição artística no que ela possui de desautomatização da vida pragmática. Exemplos disso são as causas explicitadas do encantamento que podem ser localizadas nas estratégias do romancista lido, tais como o fluxo melódico, as expressões antigas, as expressões muito simples e conhecidas colocadas em evidências, as passagens simples, a brusquidão, o acento quase rouco.


Da natural atenção em relação à estória, acompanhamos a passagem para a preocupação em se analisar o que ocasionaria a presença do sublime. As ondulações da profundidade da escrita tomam o lugar das ondulações de superfície e surge o enlevo com as interrupções da narrativa principal que Bergotte tinha o hábito de compor. Assim, acompanhamos de perto a gênese de uma das estratégias mais habituais do texto do escritor Marcel Proust, quando seu protagonista biografemático destrincha o método de composição de um de seus escritores favoritos:

Nos livros que se seguiram, ante alguma grande verdade, ou o nome de uma catedral famosa, ele [o escritor Bergotte] interrompia a narrativa e, com uma invocação, uma apóstrofe, uma longa prece, dava livre curso àqueles eflúvios que, em suas primeiras obras, permaneciam interiores a sua prosa, revelados unicamente pelas ondulações da superfície, e talvez ainda mais suaves, mais harmoniosos quando assim velados e quando não se poderia indicar de modo preciso onde nascia e onde expirava seu murmúrio. Esses trechos em que ele se comprazia, eram nossos trechos prediletos (PROUST: 1993, p. 97).

A digressão é uma constante nos livros de Bergotte que funcionam como exemplos de desligamento para Marcel. Seria uma forma de tirar a atenção das coisas aparentemente essenciais para as coisas verdadeiramente essenciais. Dessa forma, um procedimento nos é apresentado e sua importância será preciosa para compreendermos como o olhar-escrita do narrador é colocado em funcionamento.


Nesse ponto, de nossas reflexões, vale a pena nos lembrar do gênero no qual essa narrativa de Proust usualmente é colocada. Acompanhamos uma personalidade em formação e essa formação é especializada porque faz parte de um ensino, por vezes assistemático e por vezes sistemático, sobre o fazer artístico, sua teorização e sua avaliação crítica.


Mass (2000, p. 67), acompanhando os processos de constituição do romance de formação, assegura-nos que a questão central dessa forma é a do aperfeiçoamento individual que envolve o conceito de perfectibilité, que já circulava no discurso intelectual da segunda metade do século dezoito, por intermédio de Rousseau. O aperfeiçoamento individual passaria pela “formação integral do indivíduo, harmonizando e equilibrando suas tendências e talentos naturais ao lado de sua formação para a sociedade” (Idem; p. 69).


Mais do que um romance de formação, no entanto, o caso que estudamos enquadra-se na tradição do romance de formação do artista, ou Künstlerroman. Destaca-se, nessa modalidade, o fato de que o narrador-protagonista, já adulto e com sua carreira consolidada, recorda normalmente, em uma narrativa de encaixe que traz o esquema de romance dentro do romance, os esforços em prol da apreensão e do domínio do aparato tecnológico que lhe possibilita a consecução de seus objetivos pertinentes à arte de sua aptidão (SANTANA: 2003, p. 49).


As narrativas do Künstlerroman dizem respeito à direção formativa sistematizada, ou sob outra modalidade de aprendizado, em seus conteúdos e altamente voltada para um objetivo definido de modo apriorístico. Neste tipo de narrativa, as aptidões adquiridas funcionam como poderoso fator de exclusão para outras competências. O artista, no caso do literato, adquirirá as maneiras de compor seu objeto artístico em uma dinâmica de inclusão ilimitada de saberes que é sem precedentes em outra área de produção humana. Tal fato decorre da exigência que o fenômeno artístico possui em relação ao domínio de conhecimentos e saberes heterogêneos, para cumprir de modo satisfatório, uma de suas funções que é a de falar sobre as coisas da vida humana, de modo estetizado.
O Künstlerroman (SANTANA: 2003, p. 51) é um dos gêneros romanescos que mais contribuíram para que o romance moderno e pós-moderno tivesse condições para refletir sua própria composição e funcionalidade. Essa forma específica propicia ao artista os meios para desmascarar convenções improdutivas no campo da produção artística, possibilitando condições para que se reflita sobre e exercite-se, no próprio enunciado literário, novas possibilidades de composição literária.


Esse exercício de compreensão do fazer literário é feito de modo peculiar no Kkünstlerroman de Proust. Tal processo é levado adiante, nesse primeiro volume da Recherche, como se o olhar infantil e adolescente conformassem a compleição do narrador adulto. Para clarear o processo, valemos novamente das reflexões de Walter Benjamin, agora no texto Paris, Capital do séc. XX.


A compleição hibridizada do narrador adulto assemelha-se a condição do flâneur, refletida por Benjamin. Este estudioso nos falará do artista que anda por Paris, exemplo decalcado de Charles Baudelaire, com um olhar de desligamento em relação à vida pragmática. Diante de uma sociedade maquínica, massificada em seus procedimentos e gostos, o artista vagaria por lugares imprevisíveis que funcionam como barricadas ao automatismo imposto pela indústria de bens e pela indústria cultural, em específico. Na cidade, este novo sujeito resistiria à proximidade excessiva e à dessacralização da arte e da vida em geral. Nas palavras de Benjamin:

É o olhar do flâneur cuja forma de vida ainda envolve com um brilho reconciliador a do citadino da grande cidade, logo destinada a não mais conseguir consolação alguma. O flâneur permanece ainda no limiar da grande cidade, como também no limiar da classe burguesa. Nenhuma das duas o subjugou ainda. Não está à vontade nem numa nem outra. Procura um asilo na multidão. [...] A multidão é o véu através do qual a cidade habitada faz um sinal para o flâneur com o olhar, como uma fantasmagoria (2002, p. 699)


Esta “fantasmagoria” pode ser observada no exercício de desligamento, a flânerie, sob a qual funciona o olhar do narrador-personagem de nossa narrativa. Com a lição apreendida de sua avó materna, percebemos a engenhosa disposição na qual este narrador se encontra. É um narrador homodiegético actorial quando vive a época recordada como se ela estivesse ativa em sua vida adulta. Essa condição é percebida quando abrimos este primeiro volume e nos encontramos imersos na fantasmagoria do “despertar do sonhador”.


Nessa seqüência bela e instigante, vemos a estrutura espácio-temporal se desvanecendo na memória do sujeito que não se esforça para colocar ordem nas lembranças que lhe vêm à tona. Rompe-se a distância que seria natural entre o narrador adulto, aquele que seria capaz de ativar e de controlar os fatos e situações lembrados, e o narrador-protagonista em sua infância.


A dinâmica criada entre o narrador homodiegético actorial (aquele que presentifica as vivências passadas) e o narrador homodiegético autorial (aquele que controla fria e racionalmente tais vivências) oferece condições para a flânerie se instalar. A segunda posição narrativa aproxima, de modo racionalizante, o sujeito do objeto artístico, enquanto a primeira causa uma imersão na qual o sujeito sente a condição do sublime em toda a sua intensidade. O viver outra vez e intensamente a vida que passou significa um colocar-se no seio da tradição, da unicidade e integridade do fato que verdadeiramente não se encerrou. Desta forma, a aura do fato estetizado se mantém ativa e ocasiona um encantamento semelhante ao vivenciado pela primeira vez.


A narrativa de Proust, neste primeiro volume, sugere a necessidade de um alheamento do sujeito receptor em relação à obra de arte de qualquer natureza. Esse alheamento traduz-se por pela necessidade de inserir o fenômeno artístico no campo do exercício lúdico e da fruição, contextos estes que minimizam o valor utilitarista do fenômeno e enaltece sua singularidade como produção artística.


Na seqüência inicial deste primeiro volume-sinfonia de Proust, denominada usualmente de “O despertar do sonhador”, Marcel adulto reflete sobre o fato de que “um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos” (PROUST:1993, p. 11). No entanto, o mesmo narrador assegura que essa ordenação pode-se confundir e romper.


Neste momento é que se estabelece na narrativa as infinitas possibilidades de existência que o aparato artístico nos acostumou a observar. Observância desligada, mas não desleixada. Observância feita de devaneios e felicidades que vão sendo acordadas de seu sono provisório, apesar do passar tirânico do tempo que nos obriga, de modo constante a compreender o que se passa no espaço artístico e no espaço da vida.


O aprendizado da sensibilidade estética, desta forma, segue seu curso, despertando as sensações advindas de estadas no campo, de passeios ao lado de rios cheios de nenúfares, de histórias de desgraças amorosas, de cheiros de comidas campesinas que exalam da cozinha, de caminhos de Swann e de caminhos de Guermantes. Sobretudo, são sensações, reflexões e sentimentos sobre a formação do artista que nessa fase são tão intensas, porém diáfanas como o olhar despreocupado e lúdico. Apreensão, expressão e jogo da/na linguagem de gozo, repletos de atenção e de sinceridade, tornam-se peculiares ao olhar e condição infantil e adolescente quando hibridizado pela condição do adulto feita pela flânerie, que refrigera e subjaz sua perspectiva.

Referências:
BENJAMIN, Walter. Oeuvres III. Trad. do alemão por Maurice de Gandillac et al. Paris: Gallimard, 2000.
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do séc. XIX. In: LIMA, Luiz Costa Lima (org.). Teoria da literatura em suas fontes - vol. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: Literature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
MASS, Vilma Patrícia. O cânone mínimo: O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. de Mário Quintana, 15. ed. São Paulo: Globo, 1993.
SANTANA, Jorge Alves. O narrador homodiegético em Infância, O apanhador no campo de centeio, e Tia Júlia e o escrevinhador. 2003. 167p. Tese (Doutorado em Letras – Teoria da Literatura) – Universidade Estadual Paulista, Campus de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, 2003.